segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Geringonciamento

Creio que foi no Grande Sertão: Veredas que dei com o substantivo "geringonça" transformado num criativo verbo ao serviço da narração de Riobaldo Tatarana. Aludia, salvo erro, a alguma cousa que se tornara geringonciável e, se hoje me lembrei disto outra vez, há-de ter sido por força das notícias relativas à aprovação do Orçamento de Estado para 2021 pelo Conselho de Ministros. Visto que me tenho abstido, na medida do possível, de acompanhar os ecos da actualidade (procurando, assim, preservar a minha frágil saúde mental), ignoro se o dito orçamento já foi devidamente geringonciado ou se dispõe de condições para sobreviver ao grande circo parlamentar e aos malabarismos discursivos do prsdnt da rpblca. Pode ser que o documento transite para a discussão na especialidade e que aí incorpore as alterações necessárias a um Inverno tranquilo, sem mais barulhos ou gritaria do que o estritamente necessário, pois já bem basta o que para aí vai há quase um ano. O que vi, num momento em que inopinadamente passei diante do televisor à hora dos telejornais, foi que o triunfo de um ciclista português numa etapa de uma das maiores provas da modalidade a nível mundial, a qual, de forma inédita, é liderada há quase uma semana por outro rapaz português, não mereceu mais do que dez ou quinze segundos no alinhamento das notícias (ou daquilo que agora faz as vezes das notícias). Ainda assim, o noticiário teve tempo para ligações directas a Paris, onde iria decorrer uma rebarbativa partida de futebol, a qual, aliás, foi integralmente transmitida pelo mesmíssimo canal apenas alguns minutos depois. Talvez valesse a pena, pois, geringonciar um canal público de televisão menos autista, com menos esgares e menos piscadelas de olho, menos atenção às tricas espumosas dos dias e mais atenção ao que realmente importa. Os contribuintes ficariam gratos, creio, de ver mais bem gasto o dinheiro que o Orçamento de Estado dedica a estas orelhices.