terça-feira, 13 de outubro de 2020

Estas selvas, este horror

As páginas iniciais d’O Coração das Trevas hão-de aborrecer soberanamente o leitor comum de Conrad, decerto mortinho por ler o quanto antes as exóticas descrições do matagal africano — as lianas, os negros famélicos, os gritos selvagens vindos do arvoredo, o nevoeiro denso cegando os navegantes do rio Zaire. Não sendo menos comum do que qualquer outro indivíduo, estranhei, talvez por isto mesmo, ter notado desta vez que a primeira frase dita por Marlow — no estuário do Tamisa, ao entardecer — não se refere a nenhum dos espantos da história que estava prestes a contar, mas ao próprio rio inglês e às suas margens, ao território em derredor. 

— E tudo isto, aqui, foi um os lugares selvagens do mundo. 

Parece incrível, com efeito, que as civilizadas terras inglesas e a Europa toda tenham sido um dia tão lodosas e inóspitas como a mais densa das selvas, tudo treva; e que, no infinito cálculo do tempo do mundo, ainda anteontem eu, o estimado leitor, a tão bela e altiva leitora, caminhássemos todos em quatro patas, uivando como feras e comendo os próprios piolhos. Palavra de honra: a hora matinal talvez seja ainda imprópria para estas ponderações, mas prometo que vou meditar mais vezes nisto antes de me amofinar com as incríveis niquices em que todos perdemos o tempo e a serenidade. O horror! O horror!