segunda-feira, 23 de março de 2020

Novo mundo

Concluída a enésima revisão de uns escritos em que esbracejo há mais de oito anos, leio no El País sobre o poema que a norte-americana Kitty O'Meara compôs para lidar com a nova pandemia, o qual se tornou, também ele, pandémico e global, contaminando o sistema sanguíneo das redes sociais. Os versos descrevem um mundo de pessoas presas em casa, lendo livros, escutando e descobrindo a própria sombra, mas também, conforme vai estando na moda, uma situação capaz de levar os indivíduos a "pensar de forma diferente" e a "criar novas formas de viver", passíveis de "curar a Terra".

Mais ou menos ingénuos, vários profissionais da proclamação espectacular e do clickbait têm aproveitado o ar do tempo para anunciar o novo mundo que há-de irromper do chão calcinado da doença pandémica — uma espécie de nova ordem mundial em que os indivíduos se descobririam mais solidários e centrados no essencial. Mal comparado, parece um sonho decalcado da estética dominante dos novos anúncios das cadeias de supermercados, esses filantropos.

Não me interpretem mal. Nada me agradaria mais do que constatar que, terminado o confinamento geral, o mundo se livrara do consumismo desbragado e da mesquinhez, dos extremismos e da estupidez, do esgotamento dos recursos terrestres e da corrupção. Receio, todavia, que o amanhã que agora cantam os otimistas de serviço nos saiam tão furados como a terra sem amos da letra d' A Internacional. Quando (e se) os países forem capazes de retomar a vida normal, é provável que haja um novo contigente de desgraçados sem trabalho nem rendimentos, estados super-endividados e economias em agonia profunda, incapazes de garantir o mais básico e ainda a braços com as troikas e FMI's que exigirão reformas estruturais e ainda mais desempregados e menos protecção social.

Quando (e se) o alarme pandémico terminar, é possível que as cidades vazias se voltem a encher de gente como agora acontece nos domingos de sol, ao menos para esquecer a regurgitação das barrigas vazias. Ninguém, então, se lembrará de como todos exigiram aos governos o encerramento das escolas e das empresas. Os mesmos que agora exigem a tropa nas ruas e medidas "mais musculadas" reclamarão, depois, a demissão dos responsáveis pela miséria e pelo desemprego. Habituados a comer, dormir e viver ligados aos computadores, os teletrabalhadores de agora talvez não sejam já capazes de distinguir a verdade das ficções e se deixem embalar, acríticos, pelas promessas securitárias dos estados de emergência em vigor por tempo indeterminado, da suspensão da democracia e da governação por decreto.

Não é futurologia: já está a acontecer em Israel e na Hungria.