domingo, 22 de março de 2020

Serviços essenciais

Da caverna onde há-de estar respeitando o confinamento geral, um amigo diz-me, por e-mail, que acordou de madrugada, ainda o dia não nascera, e que se lembrou deste Teatro Anatómico de tão pouca utilidade, tendo vindo lê-lo, suponho, para ter da realidade a visão limitadíssima deste jogo de sombras que aqui se pratica, mas não muito diferente, nem melhor nem pior, do que aquele que às grutas do isolamento nos chega pela incandescência dos telejornais e dos sites noticiosos. Constatando que, ao menos para este amigo, o Teatro Anatómico se converteu num bem de primeira necessidade nos instantes após o pesadelo que há-de tê-lo despertado a uma hora tão vespertina, lembrei-me do personagem do conto A Hora dos Cansados, de Vila-Matas: um velho que talvez seja um sacristão ou um bombista, ou apenas um indagador ocioso, um contista, o qual se dedica a recolher numa pasta "averiguações sobre a vida dos outros". Recluso do estado de emergência, às vezes privado de um singelo café, do reflexo de um raio de sol em determinado ponto da cidade, da nortada e do trânsito das nuvens sobre as ondas, não posso agora averiguar nem observar quanto quero as histórias dos outros, os seus gestos e as suas palavras. Não estando a produção de textos sem préstimo abrangida pela declaração de serviços e bens essenciais do decreto que regula o estado de emergência e nos desregula a vida, confino-me, pois, à gruta atávica da minha varanda e constato que daqui me é possível perscrutar o mundo todo neste único edifício que daqui se vê e no teatro humano que naquelas cavernas quotidianamente se encena.