segunda-feira, 23 de março de 2020

Aprender a pedalar na era do surto pandémico

Dado que a crónica pretérita me saiu mais negra do que é costume, e quase sem ironia nenhuma, pareceu-me bem regressar precipitadamente ao precário entretém do meu isolamento social, ao menos para contar algum desses episódios bonitos que é possível observar a partir da caverna da minha varanda. Conto, pois, o caso de um vizinho que aproveitou o deserto de um parque de estacionamento quase vazio para adestrar o filho mais velho na velha arte do velocipedismo. Estava a fumar e vi: o infante foi capaz de pedalar sozinho para gáudio do progenitor, o qual, ainda incapaz de suspender o gesto que permitiria amparar alguma eventual queda, me pareceu mais entusiasmado do que a criança pedalando em círculos. Lembrei-me, evidentemente, da frase de Cortázar que compara a arte do conto a andar de bicicleta. Depois que se começa o conto, é necessário manter a velocidade e o equilíbrio, e continuar a pedalar. Para viver também.