terça-feira, 24 de março de 2020

Isolamento social

Ainda sou do tempo em que as expressões isolamento social ou afastamento social se aplicavam a pessoas pelo menos um pouco alienadas, vítimas de psiquismo ou, vá lá, a indivíduos incapazes de jogar com o baralho completo. Temo, porém, que o alienado agora seja eu, que me atrevo a sair de casa como os caçadores recolectores de outros tempos, para farejar e caçar algum sítio aberto onde ainda possa abastecer-me de cigarrilhas (cometendo o horrível pecado do açambarcamento). Não tem sido fácil, mas ainda não me vi privado da pura nicotina sem filtros necessária para aplacar o vício e combater a ansiedade que, dizem os especialistas, atacará os confinados da pandemia.

Quem me conhece sabe que tenho o hábito de obedecer de olhos fechados aos especialistas em maleitas do foro psíquico. Nestas ocasiões, porém, costumo também ter o sistema auditivo oportunamente obstruído por um conceito um pouco ultrapassado, mas que, no meu tempo, constituía um auxílio importante para lidar com as contrariedades e a realidade em geral. Chamávamos-lhe, nessa época remota, bom senso (embora, ao contrário do que supôs Descartes, não estivesse, já então, particularmente bem distribuído). Espero, por isso, que mais tarde ou mais cedo a ansiedade me acometa, tanto mais que fui imprudente e vi-me apanhado pelas normas do isolamento social sem ter em casa, ao menos, uma garrafa de whisky que me ajude a amortecer este calvário de horas mortas, o silêncio sepulcral da cidade. Refém do vírus, dos livros que tenho em casa e também daqueles esboços ruins que me vão ocorrendo, corro, pois, sérios riscos de, escapando ao Covid, me transformar, porém, num muito celerado doente de literatura, tal como em mais de um romance sucede às personagens de Enrique Vila-Matas.

Nem os canais de desporto me podem valer. As competições estão paradas e já vi não sei quantas vezes as mesmas etapas da Paris-Nice, os mesmos saltos gélidos do torneio dos quatro trampolins e as exasperantes repetições dos jogos do execrável Flamengo. Desamparado como estou, ainda espero insensatamente que o Atlético Paranaense dê a volta ao marcador ou que o filho da puta do árbitro corrija a decisão de marcar um pénalti totalmente inexistente contra o Corinthians num jogo que aconteceu, eu sei lá, talvez há coisa de meio ano. Pelo rumo que as coisas levam, e caso a pandemia não abrande, pondero muito seriamente pedir ao meu sobrinho que retransmita para minha casa os derbies extraordinários que se hão-de estar disputando na sua playstation.