(texto da minha intervenção na mesa da passada sexta-feira nas Correntes d'Escritas)
A
minha bisavó Emília era capaz de, com espantosa precisão, adivinhar as horas
olhando para a posição das sombras das árvores no chão, mas nunca aprendeu a
desenhar uma letra. Também nunca precisou de ler um livro.
Gostava
muito, por isso, de ainda poder confrontá-la com uma frase que diz, sem
espinhas, que cada livro é a antologia corrente da existência (como a que aqui
nos foi proposta). Agora, porém, e como ela está morta, só posso imaginar a
minha avó Mila a mastigar a língua entre as gengivas sem dentes e a relancear
em redor os olhos quase cegos para ter a certeza de que eu estaria a fazer
troça dela. Diria, creio, alguma coisa como “ui, credo!, num sei que dizes”.
Talvez
a organização das Correntes tenha este ano pretendido pregar-nos também uma
partida semelhante às que nós fazíamos quando nos púnhamos a fumar diante da
nossa bisavó sem que ela pudesse ver-nos. Cheirava-lhe a queimado, mas nós
dizíamos que havia de ser alguma coisa a arder na fogueira da cozinha escura e
encardida. E, como a avó Mila, tenho vontade de encolher os ombros e de fazer
de conta que não percebo nada de livros e antologias.
A
minha dificuldade, no caso do tema desta mesa, começa logo na expressão
“antologia corrente da existência”, que não sei bem o que significa. Só a
expressão “corrente” tem para cima de vinte significados possíveis.
“Existência” é uma daquelas palavras totalitárias que facilmente inclui a vida
e a realidade inteiras. E “antologia” tanto pode ser uma simples colecção de
textos como o estudo das flores.
Supondo,
ainda assim, que a expressão “antologia corrente da existência” designa, neste
caso, uma colecção actualizada da vida ou da realidade, e que esta selecção
transitará para cada livro que escrevo, creio sinceramente que acabaremos por
não concluir grande coisa.
Algumas pessoas, é verdade, confundem os
livros que escrevo com a realidade. Talvez fiquem ainda mais convencidas dessa
ligação quando lhes conto que esta ou aquela passagem de uma determinada ficção
tem alguma correspondência com factos realmente ocorridos. E não adianta nada
explicar-lhes que, depois de passar pelo filtro da literatura, os
acontecimentos já não o são; passam a ter uma vida independente e a ser
verdades às quais a ficção impôs as suas regras — como quando se inventa um
unicórnio ou um cavalo alado a partir da imagem concreta de um animal
existente.
Assim,
os livros de ficção que escrevo são sempre, de algum modo, a tal “antologia
corrente da existência”. Ao mesmo tempo, porém, não o são de modo nenhum.
Escrevê-los é sempre estar numa realidade paralela a esta, num mundo onde o
exercício da literatura torna possíveis coisas que a realidade não permite —
coisas como atravessar África a pé, inventar um romance enquanto conto mentiras
nos transportes públicos ou ser a estrela infantil de um circo um bocado
cigano. Todavia, escrever literatura é também estar dentro de uma vida e de um
corpo, da minha vida e do meu corpo, os quais, de algum modo, sempre encontram
forma de contaminar a ficção, insinuando-se às vezes de uma forma que nem
sequer é consciente, mas que não será, por isso, menos efectiva ou verdadeira.
Talvez seja verdade, portanto, que a ficção
imita, às vezes, a realidade e a vida, constituindo-se na sua antologia
corrente. Porém, e em termos estritamente literários, interessam-me mais os
exemplos opostos. Aqueles em que a vida se transforma, de algum modo, numa
antologogia corrente da ficção. Ou seja: o exacto contrário daquilo que nos foi
proposto.
Já
em anteriores edições das Correntes discorri, de resto, sobre as confusões que
frequentemente se estabelecem entre a realidade e a ficção dos meus livros.
Contei, por exemplo, como o sorriso imperfeito de uma rapariga cabo-verdiana de
um romance que tinha acabado de escrever se materializou diante de mim dias
depois, no intervalo de uma peça de teatro a que assistia na cidade do Mindelo.
Também uma ex-namorada gostou tanto de ler o romance “O Amor é para os
Parvos” que decidiu transformar o final do livro numa espécie de realidade
decepcionante e triste, dissolvendo-se no ar e deixando-me a falar sozinho,
conforme sucede ao narrador desse livro já antigo e que não era a antologia
corrente de coisa nenhuma.
Passava
bem, neste caso, sem que a realidade me imitasse a ficção, quanto mais não seja
porque a
vida dói infinitamente mais do que a literatura. Mas, de um modo geral, as
histórias que tenho para contar sobre o modo como a ficção e a realidade se
sobrepõem são mais simpáticas.
Ainda
recentemente, e para terminar, um jovem leitor garantiu-me que tinha visto,
numa ponte de Paris, ou numa rua, já não sei bem, o acordeonista húngaro que
descrevo no romance “Uma Mentira Mil Vezes Repetida”. Expliquei-lhe que
inventei aquela personagem por sugestão involuntária da cantora cabo-verdiana
Mayra Andrade, a qual, num concerto a que assisti, referiu de passagem um
músico que costumava ver tocar quando atravessava uma ponte a caminho de casa.
Tudo o resto, o modo de tocar, a aparência física, o repertório, inventei-o
enquanto escrevia o romance. O rapaz, porém, garantia que tinha visto o
acordeonista do livro com os próprios olhos, tal e qual, exactamente aquele que
eu havia escrito, o que de algum modo é o mais incrível que pode acontecer a
alguém que cria ficções. É absolutamente maravilhoso e mágico poder imaginar
que os meus bonecos de papel e tinta ganham vida própria, se desprendem das
páginas e vão, melancólicos e concretos, tocar acordeão numa ponte de Paris.
Se isto é uma coisa possível? Claro que não.
Mas a minha bisavó Emília morreu no final do século XX sem acreditar que
houvesse homens capazes de viajar a caminho das estrelas. Isto seria, decerto,
outra das coisas que nós, os mais novos, inventávamos a fim de a arreliar e
confundir. Andar um homem caminhando na lua era talvez a maior ficção que ela
podia imaginar. E, contudo, parece que foi verdade.