domingo, 2 de setembro de 2012

Por Belém


Texto da coluna Piolho dos Livros da revista 2 do Público, publicada no dia 26 de Agosto

Entre as várias coisas que admiravelmente consegue ser, Sinais de Fogo, de Jorge de Sena, é também um romance de descoberta do narrador, Jorge, enquanto persona poética. Atingido por um verso numa praia da Figueira da Foz – precisamente aquele em que percebe a humanidade como um conjunto de sinais de fogo no horizonte obscuro –, Jorge achar-se-á em Lisboa, vagueando entre Belém e Algés, “transformado em poeta, por obra e graça”, e, portanto, “detentor da pedra filosofal (uma pedra filosofal que, em vez de fazer ouro com metais ignóbeis, abstraísse palavras da merda da vida)”.

Acompanhando o revelador passeio, vi-me transportado para um dos troços de Lisboa que conheço melhor e há mais tempo, por ter feito muitas vezes aquele caminho, no sentido inverso, pela mão do meu avô paterno, um alentejano pequenino e careca que, enquanto moço, fora de Castelo de Vide para Pedrouços para trabalhar numa fábrica de borrachas. Saíamos de Algés, da casa de uns tios, atravessávamos a Avenida da Índia, transpúnhamos a linha férrea e íamos pela Avenida de Brasília até ao jardim que rodeia a Torre de Belém e o forte. Mas nada do que eu então via se assemelhava já ao trajecto desolador que havia nos anos 1930 de Sinais de Fogo, povoado de azinhagas lúgubres, montanhas de carvão e barracas de madeira habitadas por gente miserável.

Ocorreu-me, naturalmente, que a Lisboa de Sinais de Fogo era a mesma Lisboa que o meu avô conheceu enquanto operário em Pedrouços, e que ele tivesse necessidade de repetir todos os anos o mesmo passeio talvez para confirmar as enormes transformações operadas naquela parte da cidade, e para me contar da praia que havia em Belém, junto à torre. O meu avô nunca falava muito, ou sou eu que não me recordo dele falando muito, e prosseguíamos o passeio voltando a atravessar para o lado dos Jerónimos. Íamos ao Museu da Marinha, eu corria nos caminhos da Praça do Império e, depois, subíamos invariavelmente a Rua dos Jerónimos até ao Estádio do Restelo.

O meu avô conservou toda a vida o velho cartão de sócio do Clube de Futebol “Os Belenenses”, que era, então, o único clube que conseguira quebrar a hegemonia dos três grandes e ser campeão nacional de futebol na época de 1945/46. Ele contava a história de Pepe, José Manuel Soares “Pepe”, o ídolo do pontapé na bola que morreu envenenado em 1931, com 23 anos, e cujo funeral foi acompanhado por uma multidão. Parávamos por um instante diante do busto, como numa homenagem silenciosa que eu não conseguia compreender muito bem, e o meu avô declarava uma pequena trégua ao seu antiportismo selvagem, recordando que o meu FC Porto homenageava o jogador do Belenenses de todas as vezes que jogava no Restelo.

Honra, desportivismo e memória, portanto – o personagem de Sinais de Fogo não foi, afinal, o único Jorge a aprender coisas deambulando por Belém.