quarta-feira, 11 de janeiro de 2012
Património cultural ameaçado
Indivíduo de fraca carne, sou facilmente atraído pela obscura cloaca do pecado e da tentação. Um restaurante que pretenda captar a minha atenção apenas necessita, por exemplo, de propagandear a existência em menu de acepipes como rojões, papas de sarrabulho, cabritinho assado, tripas e anexos (de preferência escritos com marcadores sobre toalhas de papel coladas na montra). Atraído, pois, pelo canto mavioso destas metafóricas sereias, entrei hoje num estabelecimento cujos encantos, afinal, residiam mais na componente sócio-antropológica do que na gastronomia propriamente dita. Tem uma televisão ao fundo da sala a dar as notícias, a cozinha visível e dois atendentes, o patrão e um empregado, os quais comunicam entre si e com a cozinha mediante berros e gritos, DOIS COZIDOS! TRÊS SOPAS! UMA PERNA DE PORCO! UM QUARTO DE VINHO!, independentemente da distância a que se encontrem uns dos outros. De vez em quando, e no mesmo tom de voz, o patrão destrata o empregado, rapaz de aspecto rústico, e indica as mesas aos clientes que vão entrando, como se sofrêssemos todos de algum tipo de incapacidade auditiva severa. A clientela não é menos peculiar, entre idosas que parecem acabadas de sair da automotora da Régua com um molhe de tronchudas debaixo do sovaco, mulheres de avental, imigrantes ucranianas, “jovens”, “sotôres”, a “senhora do pão de açúcar” e “o rei”, também designado, a dado passo, como “o rei de Portugal”. O dito monarca é, diga-se, o mais enigmático de todos: entrou de chapéu de feltro claro, óculos escuros, barba e cabelos longos e grisalhos, pouco lavados, e assim se manteve enquanto comia a SOPA! e o COZIDINHO! Lembrei-me do fado do embuçado, embora não estivesse ninguém a cantar o fado, e dos personagens dos filmes do João César Monteiro. Também não estava ninguém a filmar, o que é um pecado. Um dia destes o restaurante fecha e é mais um naco de património pátrio que se perde.