segunda-feira, 16 de janeiro de 2012
Dar à língua*
Havia ipês amarelos florindo nas ruas de São Paulo quando, em Novembro de 2004, lá estive por causa do Prémio Portugal Telecom de Literatura. Numa dessas tardes, a Luana Piovani também desabrochou inesperadamente diante de mim, no corredor de um centro comercial, mas essa é uma outra história. Ou talvez não: lembrei-me de ambas as coisas enquanto lia a hilariante e fescenina entrevista do “senhor Pipi” no último Ípsilon, e porque a acção do livro que tenho andado a ler, Pornopopeia, decorre em São Paulo e inclui pelo menos uma referência ao shopping onde Luana andava, naquele dia, a arejar os seus naturais encantos. Tenho para mim, pois, que tanto o “senhor Pipi” como Zeca, o narrador do romance de Reinaldo Moraes, teriam gostado de a ver passar, sardenta e baixinha, a caminho de...
Onde é que eu ia? Já sei: Novembro de 2004, São Paulo, Prémio PT de Literatura. Num dos jantares oficiais, fiquei sentado ao pé de alguns colegas brasileiros e passámos uma parte da refeição discutindo as particularidades da Língua Portuguesa, agora supostamente unificada pelo chamado Acordo Ortográfico. Havia quem defendesse que o Português do Brasil é já um outro idioma e que devia ser tratado como tal. Um dos ilustres plumitivos, mais radical, queria também que o Italiano fosse reconhecido como língua oficial do país. Dotado da loquacidade proporcionada pelos bons vinhos, eu rebati os argumentos deles como pude: que devíamos defender a diversidade e a riqueza de um idioma que contém tantas variantes, que sou capaz de ler livros de escritores brasileiros e reconhecer neles, também, a minha língua, que... Em desespero de causa, perguntei-lhes se não tinham sido capazes de compreender o cristalino Português praticado no diário O Meu Pipi, que lá havia sido publicado pouco tempo antes, com assinalável êxito. Um dos mais radicais convivas arregalou os olhos e perguntou: “O Pipi é português”? É. E eles andavam a lambuzar-se naquela desbragada sacanagem, do mesmo modo que eu me tenho fartado de rir com a escatológica pouca-vergonha que enche as quase 600 páginas de Pornopopeia. Ou seja: não faz falta nenhuma que se normalize a língua.
Sabe-se, pelo menos desde um célebre poema nostálgico do brasileiro Gonçalves Dias, que as aves que cantam em Coimbra não gorjeiam como as do Maranhão. O Português levado para além-mar miscigenou-se e ganhou asas. Frutificou e perdeu as amarras, ao ponto de a nossa língua, a “última flor do Lácio” evocada num poema do também brasileiro Olavo Bilac, se ver transmutada em “flor do felácio” pelo narrador de Pornopopeia – o qual, apesar de todo o desbragamento (linguístico e não só), não abre mão da leitura do nosso Cesário Verde em bom Português antigo. Por muitas voltas que se dê ao idioma, um autocarro dos nossos há-de sempre ser um ónibus no Brasil. Uma orgia é uma suruba. E por aí adiante. O acordo não uniformiza coisa nenhuma. É tempo perdido e inútil, treta e papo-furado. Quando muito, transforma as galantes erecções do “senhor Pipi” nas simplificadas ereções do Zeca. Lindo serviço.
*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 10 de Janeiro de 2012