segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
José Rodrigues Miguéis*
A imortalidade é um acidente difícil de gerir. Ocorre-me isto porque, só nos últimos dias, perdemos, os vivos, a companhia de Cesária Évora, de Vaclav Havel, de Christopher Hitchens, do carnavalesco Joãosinho Trinta ou de Kim Jong-il, para falar só naqueles que tiveram direito a notícia nos jornais que leio. É provável que, por bons ou maus motivos, alguns deles continuem a ser recordados nos próximos dez ou vinte anos. Talvez sejam ainda lidos, escutados, amados e respeitados dentro de um século ou dois. Sodad há-de ser, por muito tempo, uma espécie de hino de Cabo Verde, e Havel será sempre o primeiro presidente da Checoslováquia eleito após o fim das ditaduras do Leste europeu. Na Rocinha, Trinta não deixará de ser aquele que conquistou os títulos do Carnaval do Rio para os Acadêmicos. E a memória de Jong-il durará enquanto persistir a monarquia comunista da Coreia do Norte.
E Hitchens? Até quando continuará a ser lido e admirado?
A pergunta pode parecer despropositada, mas vem-me em boa hora. Permite-me, por exemplo, escrever uma crónica em que tenho matutado com certa frequência; uma crónica que recorde José Rodrigues Miguéis, o escritor português falecido em Nova Iorque, em 1980, com o qual a eternidade não tem sido benévola. Miguéis foi muito popular, e justamente, da década de 1950 em diante, e ainda o li nos anos 1980: os contos de Paços Confusos, a peça de teatro O Passageiro do Expresso e o extraordinário O pão não cai do céu, aparentado, se se quiser, com o Levantado do Chão de Saramago – um retrato contundente e trágico do país que era Portugal durante o Estado Novo, assolado pela pobreza, pela fome e pela tortura. Hoje, porém, José Rodrigues Miguéis está completamente arredado das livrarias e das leituras do grande público, remetido, quando muito, ao reduto estreito das faculdades de Letras e ao bolor dos alfarrabistas. Foi, por isso, com jubilosa alegria que, há dias, reencontrei os livros de Miguéis expostos ao ar livre, tomando a brisa que corria pela alfacinha Rua Anchieta, onde, num sábado à tarde, se tinha montado uma feirinha de livros velhos e amarelecidos. Tomado de um impulso irreprimível, fiz-me dono de um exemplar de Léah e Outras Histórias, de 1958, na sexta edição que a Estampa fez em 1981, e de Uma Aventura Inquietante, também de 1958 e reeditado na década de 1980.
Custa-me, ainda assim, que, mesmo na minha geração, muito pouca gente tenha lido frases como “eras quase da minha estatura, rosada, fresca e reluzente como um grande fruto”, talvez porque o realismo passou de moda e saber de José Rodrigues Miguéis se transformou numa bizarria excêntrica, partilhada por gente igualmente deslocada e extravagante, que não confunde os melhores zeladores da língua portuguesa com a terra rasa e estéril que por aí se vende como se fosse literatura. Não se lê Miguéis (como não se lêem Sena, Nemésio ou Gomes Ferreira) e, pior do que isso, há ainda quem queira regressar ao antigamente, quando Portugal se parecia com a Coreia do Norte e os homens quase não tinham voz.
*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 20 de Dezembro de 2011
A imagem acima, roubada à Brown University (tenho a certeza de que o meu amigo Onésimo fará o favor de me absolver), inclui um esboço da cena culminante do conto O Natal do Dr. Crosby, que ontem, providencialmente, terminei de ler.