segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Jingle bells, jingle bells, já temos promoções*


Curta-metragem: desalentados com os escassos sinais da quadra festiva nas ruas do Porto, o Pai Natal e o seu antecessor, S. Nicolau, juntam-se no Mercado do Bolhão para carpir mágoas. Triunfante e ufano, o Gnomo das Promoções irrompe na Cafetaria Pintainho para se gabar

Fade in.
Exterior.
Porto, Avenida dos Aliados. Junto da estátua de Almeida Garrett há uma construção cónica de manequins de plástico (consta que é uma espécie de árvore de Natal). Dois dos manequins já estão tombados, desarticulados.
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Rua 31 de Janeiro, sobre as cabeças, duas fileiras tristes de luzinhas pindéricas em forma de pinheiro fazem as vezes de iluminações de Natal.
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Sucessão de montras da Baixa onde se lê “Promoções”, “-30%”, “-50%”, “Outlet”, “-70%”, “Descontos no interior”, “Promoção Especial de Natal”, “Natal com descontos especiais”, “Liquidação total”, “Ganhe 500 euros em produtos”, “-50%”, “Promoções”... Um grupo de imigrantes sul-americanos toca música dos Andes na Rua de Santa Catarina. Sobre a entrada do Teatro Sá da Bandeira, um enorme cartaz anuncia a revista Mostra a perna que a crise não é eterna.
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Interior
Mercado do Bolhão. Duas vendedeiras de frutas, com orelhas de coelho, perguntam:
Quer alguma coisa, filhinho?
No centro do mercado, há um presépio armado em redor da fonte. As floristas vendem raminhos de azevinho.
Quer alguma coisa, filhinho?
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A Cafetaria Pintainho tem a televisão ligada, num canto, a transmitir uma telenovela portuguesa. Noutro canto há um fio eléctrico do qual pendem lúgubres luzinhas coloridas. Por baixo, um minúsculo pinheiro de plástico, com dois palmos de altura e sem decoração. Ao balcão, cabisbaixo, está sentado o Pai Natal. Come, em silêncio, petingas fritas com arroz de feijão. Pede mais um copo de verde tinto Paisinho no momento em que entra o São Nicolau. Encosta o báculo à parede e senta-se também ao balcão. Cumprimenta o Pai Natal com uma palmadinha nas costas.
São Nicolau: Isso vai ou quê?
Pai Natal (bebendo o vinho de um trago só): Vai mal, vai mal.
São Nicolau: Então? Não é preciso beber para esquecer. Isto toca a todos, meu velho. Vê tu o caso do Menino Jesus, que já nem cá aparece. Mais cedo ou mais tarde, todos acabamos por nos transformar em velharias de bric-a-brac. Faz como eu, habitua-te. Há muito tempo que sou uma espécie de ficção do Natal do passado. Ainda desembarco todos os anos na Ribeira, mas agora já nem os jornais aparecem para fazer a fotolegenda do costume.
Pai Natal: Falas de papo cheio. Continuas a ser o taumaturgo, o santo de Bari, o padroeiro da Rússia, da Noruega, da Grécia e dos guardas-nocturnos da Arménia. A mim tiram-me o Natal e fico sem nada.
São Nicolau: Sempre és o santo padroeiro da Coca-Cola, homem!
Pai Natal: Mas ainda sou novo, não pensei que me substituíssem tão depressa.
São Nicolau: Somos sempre novos enquanto os outros não nos transformam em velhos.
Pai Natal: Então? O filósofo não era Santo Agostinho?
São Nicolau: Era. Isto um santo safa-se como pode. Hoje faz milagres, amanhã distribui presentes e para a semana, se for preciso, ensina Filosofia. Um tipo habitua-se a tudo.
Pai Natal: Pois eu ainda não me habituei a isto. Já viste como está a cidade? Vai-se de uma ponta à outra de Santa Catarina e só se vêem promoções, liquidações, descontos... A maior parte das lojas nem tem decorações de Natal, só autocolantes com percentagens. Música dos Andes em vez do Jingle Bells. Só vi um Pai Natal insuflável, daqueles dos chineses, com um ar aparvalhado, e mesmo assim ninguém lhe ligava nenhuma.
São Nicolau: É da crise... Este ano o Gnomo das Promoções chegou mais cedo.
Pai Natal: Cabrãozinho...
Nisto, o Gnomo das Promoções materializa-se em cima do balcão, com um grande sorriso. Faz duas ou três cabriolas e fica a pairar no ar diante do Pai Natal e do S. Nicolau.
Gnomo das Promoções: Está tudo bem, velhotes?
Pai Natal: Desanda, morcão. Arreda belzebu, fideputa, cabrão.
Gnomo das Promoções: Que mau humor! Então? É Natal! (ri-se com uma gargalhada escarninha)
Pai Natal (resmungando): É, mas não parece.
Gnomo das Promoções: Não tenho culpa, é a crise. Ainda há petingas? Estou com uma fome de lobo.
São Nicolau: Só bolinhos de bacalhau.
Gnomo das Promoções: Seja. Bolinhos de bacalhau. Sempre fico dentro do espírito da quadra.
Pai Natal: Se vens para aqui gozar, ouve o que eu te digo e põe-te a mexer antes que me chegue a mostarda ao nariz.
Gnomo das Promoções: Ui, que rezingões que nós estamos. Somos amigos ou não somos?
Pai Natal: Eu não sou amigo de gentinha como tu. T’arrenego, concorrência desleal! Agiota, maldito, avezimau, tinhoso!
Gnomo das Promoções: Eu não tenho culpa se a vida te corre mal, ó velhote. Não inventei as compras, nem fui eu quem transformou o Natal nesta coisa de dar presentes e lembrancinhas. Só cheguei mais cedo para ver se te dava uma mãozinha à festa, para ver se as pessoas podem ao menos fazer de conta que está tudo bem e que é Natal como de costume. É assim que agradeces?
Pai Natal: Obrigadinho, ó Freitas.
Gnomo das Promoções: Já não está cá quem falou. Se estás mal, muda-te. (erguendo o dedo, professoral) Podes muito bem olhar para o mercado de Língua Portuguesa... Angola, Moçambique, a Guiné, São Tomé e Cabo Verde, e não só, o Brasil também tem uma grande necessidade de mão-de-obra qualificada ao nível de pais natal.
São Nicolau: Onde é que eu já ouvi isso?
Gnomo das Promoções: Deve ter sido o Duende da Emigração. Ele anda aí outra vez. Para Angola rapidamente e em força!
Pai Natal: Está bonito. Já só falta chover aqui dentro.
São Nicolau: Já faltou mais. As obras no mercado nunca mais começam.
Gnomo das Promoções: Tenho de trazer comigo, um dia destes, a Fada da Construção Civil.
Pai Natal: Ou isso ou organizar-se uma corrida de mercados antigos.
Fade out. A câmara sobe e afasta-se, em traveling, sobre o Bolhão e, depois, pela cidade mal iluminada. Ouve-se em fundo uma canção tradicional:

Jingle bells, jingle bells!
É Natal à força.
O papá e a mamã
Abrem os cordões à bolsa.

Jingle bells, jingle bells!
Já temos promoções;
Estamos mal, estamos mal:
Não há bolsa para os cordões.

FIM


*O texto aqui reproduzido foi publicado um dia destes numa página obnóxia de um jornal que quase ninguém leu, por ser natal e assim