segunda-feira, 28 de novembro de 2011
Santa Pamela Anderson*
Quando se pensa que já se assistiu a quase todos os malabarismos e piruetas passíveis de favorecer a venda de literatura (e de outros produtos de consumo mais ou menos rápido), há sempre, algures, um Eduardo Labarca capaz de inventar um truque ainda mais surpreendente. O que fez Labarca? Escreveu e publicou um livro de “semificção” chamado El Enigma de los Módulos, em cuja capa se apresenta uma fotografia do autor urinando sobre a lápide de Jorge Luis Borges no cemitério de Genebra onde o génio descansa em paz.
Eduardo Labarca é um escritor chileno de 72 anos e, face à polémica gerada, explicou que a mediática mijinha não passou de um gesto artístico, realizado com o objectivo confesso de obter “prestígio”. Também contou que se tratou de um atentado simulado, já que não urinou de facto, limitando-se a despejar sobre a tumba o conteúdo de uma garrafa de água mineral.
Os mecanismos da publicidade de choque são, porém, misteriosos. O truque só funciona se alguém se escandaliza e reage com veemência. O caso de Labarca, por exemplo, data de Janeiro deste ano e foi noticiado em jornais de vários países, da Argentina a Inglaterra, onde mereceu até a atenção do Guardian. Mas não mobilizou os media portugueses (comprometendo, de algum modo, os quinze minutos de fama a que Labarca há-de ter direito), mais sensíveis a campanhas que simulem manchar a honorabilidade de alguma personagem bíblica. Outra coisa que resulta espectacularmente, como ainda na semana passada se viu, são fotomontagens em que o papa apostólico romano apareça a dar um apaixonado linguadão a um imã sunita.
Custa a acreditar, todavia, que a reacção histérica a estes truques se deva à pura inabilidade de uma instituição milenar e, de algum modo, especializada na publicidade dos próprios milagres e das obras literárias canónicas. Se um tipo se põe a meditar no assunto, pode até chegar a acreditar que a igreja católica tem uma avença com a Benetton (e com a editora Gradiva), assegurando o sucesso das respectivas campanhas de marketing contra o pagamento de generosas espórtulas. Do mesmo modo, estou quase tentado a apostar que não foi por simples coincidência que a troika e o governo se puseram de acordo para divulgar a necessidade de cortar (ou conter, belo eufemismo) os ordenados do sector privado uma semana antes de uma greve geral. Nem José Rodrigues dos Santos faria melhor.
Sendo as centrais sindicais, e os trabalhadores em geral, bestialmente ingratos, é natural que ainda não se tenham lembrado de retribuir a contribuição dos verdugos para o possível sucesso da paralisação, eventualmente adiando a greve enquanto Governo e troika decidem se vão cortar ou moderar os salários. Trata-se, evidentemente, de um debate seriíssimo e desinteressado. Tão sério, pelo menos, como aquele programa especial de Natal da televisão canadiana CTV no qual a actriz Pamela Anderson vai inocentemente interpretar o papel de Maria, a virgem. Acreditamos?
*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 22 de Novembro de 2011