segunda-feira, 21 de novembro de 2011
Nottingham outra vez*
Na versão mais conhecida da lenda, Robin dos Bosques rebela-se por causa da cobrança abusiva de impostos: os servos eram obrigados a entregar quantias cada vez mais elevadas aos esbirros do xerife de Nottingham, mas o dinheiro servia basicamente para sustentar os gastos excessivos dos detentores do poder. Intrépido, Robin emboscava os odiosos cobradores na floresta, assaltava-os e distribuía o dinheiro pelos mais necessitados. Terá sido, de algum modo, um dos inspiradores do “Estado Social”.
Do tempo de Robin dos Bosques para cá, o modo de encarar os impostos alterou-se bastante. Pagamos hoje muito mais do que se pagava em Nottingham, mas fazemo-lo porque nos convenceram de que o Estado receberia esse dinheiro e trataria de apoiar os mais carecidos, assegurando, por outro lado, um conjunto de serviços públicos de que todos necessitamos - hospitais, estradas, abastecimento de água e luz, escolas, serviços de segurança, tribunais, transportes - e que não seríamos capazes de prover individualmente. A nossa vida em sociedade assenta em grande parte, aliás, nesta ideia de organização colectiva. Não faria nenhum sentido termos uma escola para cada um, dispormos de uma estrada particular para nos deslocarmos de casa para o trabalho, pagarmos um médico privativo, uma central de tratamento de água e uma canalização só para nós, ou fazermos justiça pelas próprias mãos.
Esta concepção, porém, está a mudar muito. E muito depressa. Os estados entenderam, a dado passo, que os privados seriam capazes de administrar melhor os fundos públicos e entregaram-lhes a construção e gestão de estradas e de hospitais, ou a produção e distribuição de energia eléctrica. No Porto, e só para usar um exemplo que me é próximo, a câmara municipal já decidiu privatizar a recolha do lixo, o Pavilhão Rosa Mota, os mercados do Bolhão e do Bom Sucesso, o Palácio do Freixo, o Rivoli, o abastecimento de água e o estacionamento na via pública. A habitação social, a reabilitação da Baixa e do centro histórico e a “animação da cidade” também foram entregues a “empresas municipais”. Ou seja: os cidadãos continuam a pagar (cada vez mais) impostos e, ao mesmo tempo, tornaram-se clientes das firmas que passaram a desempenhar os serviços públicos privatizados.
Imagino que esta nova organização social tenha sido planeada. Supôs-se que, como em Nottingham, não teremos mais remédio senão pagar impostos cada vez mais altos, a bem ou a mal, e sem que alguma vez nos perguntemos para onde vai esse dinheiro (desde que nos permitam continuar a eleger o xerife). Cavaco Silva chama a isto “maturidade cívica”, mas é capaz de estar enganado. Estamos muito carecidos de um Robin dos Bosques. Tanto que, às vezes, até o confundimos com um qualquer farsante que, por estratégia política, aparece a reclamar impostos iguais “para todos”. Se, porém, escutarmos com atenção, nunca os ouviremos reclamar o fim das isenções fiscais de que beneficiam os lucros dos grandes grupos económicos. Não se morde a mão que dá de comer.
*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 15 de Novembro de 2011