segunda-feira, 18 de julho de 2011

Kathleen Turner*



Se não fosse já suficiente a dose de desgraça e decepção a que diariamente temos direito apenas lendo as páginas de economia e política dos jornais, este vosso criado cometeu ainda a imprudência de estacionar no domingo à noite diante do televisor com o fito de se distrair um pouco antes de serem horas de dormir. Vi um episódio e meio de Uma Família Muito Moderna, que é uma das melhores coisinhas que passam no caixote, e, depois, mudei de canal para ver alguns lances de Californication. Em má hora o fiz. A dado passo deparei com uma mulher envelhecida e loura que se parecia com a actriz Kathleen Turner. Percebi, logo a seguir, que aquela ruína era mesmo a Kathleen Turner. Ou melhor: era aquilo que sobrou dos predicados que ela tinha e que povoaram os meus devaneios de adolescente.

Uma parte do horror (e da nostalgia) que me acometeu deriva directamente do facto de ter cristalizada na memória a imagem fulgurante e tórrida de Kathleen Turner enquanto Matty Walker, a perigosa e irresistível loura de Noites Escaldantes (Lawrence Kasdan, 1981), tendo, porém, esquecido completamente a mulher madura que interpretava a Mrs. Lisbon de As Virgens Suicidas (Sofia Coppola, 1999). Na pior das hipóteses, sou capaz de recordar vagamente a interpretação de Kathleen em Peggy Sue Casou-se (Francis Ford Coppola, 1986), a qual lhe valeu a nomeação para o Oscar de melhor actriz, mas aquilo de que me lembro sempre é da imagem dela em camisa branca e saia vermelha, provocadora, vista através de uma vidraças pelos olhos de William Hurt/Ned Racine, enquanto os espanta-espíritos do alpendre se agitam tocados pela brisa de uma noite de Verão na Florida. E recordo também da voz – a voz rouca e quente de Kathleen Turner provocando Racine: “Well, some men, once they get a whiff of it, they trail you like a hound”.

Salvo erro, foi por causa da voz que consegui reconhecer Kathleen Turner em Sue Collini, a destravada e ninfómana personagem de Californication. Resta nela ainda alguma coisa da suave rouquidão que também ficou gravada na voz da Jessica Rabbit dos desenhos animados. O resto, porém, desapareceu para sempre. Kathleen Turner está inchada e destruída. Um destroço. Tentar reconstituir como era a partir daquilo que é hoje equivaleria a um esforço semelhante ao que terá de despender-se para adivinhar como eram os budas de Bamiyan antes de que a erosão do tempo e a insânia taliban os tivessem desfigurado.

Vi Kathleen Turner no domingo à noite e lembrei-me inevitavelmente de Elizabeth Taylor, Sofia Loren e Brigitte Bardot, mas também de Marlon Brando ou do trágico Mickey Rourke, por exemplo – ícones universais da beleza a quem a idade maltratou sem piedade. Envelhecer é uma coisa que impressiona, ainda que seja o mais natural que há. Os anos passam e as pessoas perdem uma parte do interesse que têm, ainda que cheguem a tornar-se mais sábias e ponderadas. É assim a vida.

Acresce que não sei ao certo de onde isto veio, se é dos 40 anos já feitos ou de outra coisa qualquer. Mas talvez seja melhor deixar de ver televisão ao domingo.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 5 de Julho de 2011