segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Um comediante*


Se fosse verdade que o clima rigoroso dos países do Norte determinou o progresso intelectual dos povos que lá vivem – dele irrompendo, como flores entre a neve, as principais correntes filosóficas que moldaram a civilização ocidental –, esta crónica seria provavelmente a mais extraordinária de todas quantas aqui tenho escrito. A redacção amanheceu privada de electricidade, o aquecimento não funciona e eu tenho as mãos geladas e o corpo encolhido para suportar a invernia. Graças a uma qualquer ironia da técnica, porém, o meu computador continua ligado e eu posso, assim, trabalhar para (tentar) aquecer, como suponho que terão feito, no seu tempo, Tolstói e Dostoievski, Kant e Erasmo, mas também Proudhon e Marx, Leibniz, Locke e o senhor Nobel enquanto inventava a dinamite.

Uma vez que não acredito nas vantagens morais do frio e do ascetismo, nem na superioridade de alguns povos sobre os demais, vi-me, entretanto, obrigado a abandonar as instalações para atravessar a Baixa do Porto a pé, de um lado para o outro, a fim de procurar aumentar a temperatura corporal e descongelar os dois neurónios que habitualmente me assistem. Subi e desci ladeiras, escorreguei uma ou duas vezes nas pedras molhadas e aproveitei para almoçar um naco de novilho e para beber um quartilho de maduro tinto. Findo este autêntico martírio, estou finalmente capaz de matraquear no teclado sem parecer que estou a fazê-lo com a extremidade de um apêndice morto.

O eventual leitor não terá, sequer, notado que daqui saí, mas a verdade é que fui e que regresso agora, tão pouco europeu como antes e, portanto, quase nada capaz de impressionar a ilustre audiência com o brilhantismo gelado desta crónica. Os povos que vivem ao frio terão sido capazes de arquitectar grandes e imortais romances, brilhantes (ups!) sistemas económicos e sociais e formas mais eficazes de matar o próximo, mas os outros inventaram o samba, a crioula, o realismo mágico, o Kama Sutra e o cha-cha-cha. Não sei se é possível escolher imparcialmente entre uns e outros, mas não andarei muito longe da verdade se disser que a crónica enregelada não estava a sair grande coisa e que só o espírito (quente) do maduro tinto foi capaz de salvá-la.

Um leitor habitual destas crónicas, que encontrei na rua no último dia do ano passado, cumprimentou-me e disse que eu sou “um cómico”, conclusão a que chegou, pelos vistos, ao ler aquilo que aqui vou escrevendo. Uma vez que não posso, em consciência, rebater o teor daquela afirmação, nem a sua bondade, pareceu-me melhor tirar algum proveito deste pouco invejável estatuto e abster-me de tentar escrever sobre assuntos sérios nesta semana aziaga em que tudo aumenta. O capitalismo, o liberalismo e o Estado de Direito não estarão, nesta altura, na melhor das formas, mas de certeza que não vou ser eu a mudar alguma coisa entre as duas piadas torpes que aqui costumo fazer. Os velhos latinos cunharam uma frase segundo a qual a rir se castiga melhor. Os latinos, porém, eram, como eu, indivíduos do Sul. Não se deve levá-los muito a sério.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 4 de Janeiro de 2011