terça-feira, 9 de novembro de 2010
Repito: Leite Derramado é um livro do caraças; o prémio fica muito bem entregue.
Depois do Jabuti para Livro do Ano, o romance de Chico Buarque ganhou também o Prémio Portugal Telecom de Literatura Brasileira. Suponho que não tenha sido só para irritar certas e determinadas pessoas. Aqui fica, a propósito, a (última) recensão que escrevi para o Ípsilon, em Junho do ano passado:
O velho gagá no seu labirinto
Conheçam Eulálio Montenegro d’Assumpção, nascido a 16 de Junho de 1907, descendente de prósperos comerciantes da cidade do Porto, herdeiro de Eulálio Penalva d’Assumpção, conselheiro do Marquês do Pombal, e até do doutor Eulálio Ximenez d’Assumpção, “alquimista e médico particular de dom Manuel I” lá nos idos de mil quatrocentos “e lá vai fumaça”. Conheçam-no agora que está numa cama de hospital, entrevado, centenário e meio louco, arruinado, entorpecido pela morfina, gagá e desfiando histórias sem nexo sobre o suposto passado ilustre da sua linhagem. Vejam-no porque é ele o personagem principal do novo romance do brasileiro Chico Buarque, “Leite Derramado”, confirmação, se precisa fosse, de um dos mais notáveis escritores contemporâneos da língua portuguesa – já o era quando apenas escrevia canções.
“Leite Derramado” é menos atrevido, em termos linguísticos e estilísticos, do que “Estorvo” e “Benjamim”, desprovido, portanto, de experimentalismos formais, e não tem a seu favor a sofisticação narrativa ou os artifícios metaliterários de “Budapeste”. A força maior da narrativa é, neste quarto romance de Chico Buarque, a simplicidade aparente. Lê-se e é como se cada um dos leitores pudesse ocupar um lugar na borda da cama do enfermo Assumpção e o estivesse escutando e segurando-lhe a mão, à espera do seu derradeiro suspiro.
Para reflectir sobre a complexidade dos mecanismos da memória (“São tantas as minhas lembranças, e lembranças de lembranças de lembranças, que já não sei em qual camada da memória eu estava agora”), Chico Buarque socorre-se, pois, da coloquialidade de um velho senil. Porém, tratando-se do discurso de um homem centenário, com modos de outros tempos e uma “linguagem acurada”, o estilo, a despeito das delirantes peripécias narradas, é absolutamente fluente e límpido, mesmo torrencial, e servido por uma ironia finíssima (o acidente no banho do qual resulta o internamento do senhor Assumpção, narrado já perto do final do livro, é, por falar nisso, absolutamente antológico). O resultado é uma prosa saborosíssima.
Dirigindo-se confusamente ora à enfermeira predilecta, ora à filha, ora à mãe, ora a algum maqueiro de circunstância, e baralhando-os a todos com os fantasmas do passado (o proverbial leite derramado), o narrador vai-se revelando um homem cortês, um cavalheiro supostamente proveniente de uma aristocracia desmoronada. Mais do que a romântica ruína que sobrou dessa hipotética família ilustre (“papai foi o político mais influente da Primeira República, contei que o rei Alberto costumava vir da Bélgica se aconselhar com ele?”), Assumpção é sobretudo o que resta de um homem que amou insensatamente uma mulher mestiça moldada às suas (alegadas) necessidades de casta – e por elas aclareada e dotada de uma falsa linhagem –, a qual perdeu por vergonha ou ciúme, não se sabe bem. O que se sabe é que, como prenúncio do descalabro, essa mulher, Matilde, se recusará a alimentar a própria filha, despejando (derramando) o leite do peito no lavatório da casa de banho.
A cena é repetidamente revivida por Assumpção no leito hospitalar, transformada na causa do desaparecimento da orgulhosa civilização a que os Assumpção pertenciam, soterrada sob a explosão demográfica e urbanística do Rio de Janeiro, e de todos os desatinos do tempo: “Mesmo vivendo nas condições de um hindu sem casta, em momento algum perdi a linha”, diz o velho a dado passo, sem que jamais seja possível estabelecer com exactidão se o que ele conta é puro delírio, falsificação ou invencionice; se Matilde morreu, fugiu ou foi internada num sanatório; ou mesmo se alguma vez existiu a mansão de Botafogo e tudo o resto.
“É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópias dela, para a hipótese de a história se extraviar”, lê-se na página 114, pouco depois de Assumpção reconhecer que é “esquisito ter lembranças de coisas que ainda não aconteceram”. “A memória é deveras um pandemónio”, sabemo-lo perfeitamente, mas só na figura de um velho tonto às portas da morte a capacidade para reinventar confusamente o passado alcança o seu zénite. Chico Buarque sabe-o e explora com mestria o humor destrambelhado que sobra nos interstícios das dissertações do velho patarata e algo tarado.
Vezes sem conta Assumpção se enreda na memória sensual de Matilde (“ela dizia, eu vou, Eulálio, e seu corpo tremia inteiro, levando o meu a tremer junto”), reconstruindo-a sucessivamente para passar em revista velhas e pouco aristocráticas perversões (“Durante um período, para você ter uma ideia, encasquetei que precisava enrabar o Balbino”) e manifestar, ainda, sinais de uma surpreendente vitalidade fescenina: “Também acho uma delícia quando você esquece os olhos em cima dos meus, para pensar no galã da novela, nas mensagens do celular, na menstruação atrasada”, diz à enfermeira.
Tetraplégico, arruinado e com “dores nos ossos e nas escaras”, Assumpção mantém sempre um pé na gloriosa fazenda do pé da serra, na mansão de Botafogo, nas conversas de família em Francês (para que os empregados não compreendessem) e nas suítes do Ritz, como se a memória de tudo isso fosse a condição para continuar a justificar o facto de permanecer vivo e, ao mesmo tempo, uma privação imensa: “Qualquer coisa que eu recorde agora, vai doer, a memória é uma vasta ferida”. A espaços, o lúbrico velhinho vai tendo consciência da real situação em que se encontra: “Seria até cômico, eu aqui, todo cagado nas fraldas, dizer a vocês que tive berço. Ninguém vai querer saber se porventura meu trisavô desembarcou no Brasil com a corte portuguesa. (...) não há passante que não afrouxe o passo para me espiar, como a um desastre à beira da estrada”, comenta.
Conheçam, pois, Eulálio Montenegro d’Assumpção e escutem as suas últimas palavras, a derradeira confissão e o delírio final de um velho cavalheiro louco. Vale absolutamente a pena.