segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Ainda cá estamos

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 19 de Outubro de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)



No estado a que chegamos, como diria o capitão Salgueiro Maia, talvez valesse a pena rabiscarmos também uma mensagem apressada num pedaço de papel velho, como fizeram os mineiros chilenos: estamos bem no refúgio os dez milhões. Assim mesmo, sem pontuação nenhuma, para que se perceba que estarmos bem significa apenas que estamos vivos, mas um pouco aflitos e sem perceber ao certo como vamos sair do buraco em que estamos enfiados.

Talvez, deste modo, alguém perceba e venha em nosso socorro. Talvez se mobilize a NASA e a comunidade internacional, e se arme uma grande operação de resgate com uma cápsula que nos leve daqui para fora, para um sítio onde se possa respirar ar puro e não seja necessário fazer contas aos preços dos iogurtes, da carne, do pão e das portagens novas, nem racionar o minguado ordenado ou dar grandes voltas à cabeça para sobreviver a todas as coisas estranhas e ruins que sucessivamente nos acontecem.

Estamos na mina, no fundo da mina, soterrados por uma inacreditável montanha de equívocos, ardis e falsidades. As regras de segurança não foram cumpridas, não se atenderam os preceitos do mais elementar bom senso e nenhum chefe de turno cuidou de repartir equitativamente os sacrifícios e os benefícios. Foram sempre os mesmos a ter acesso à melhor ração, enquanto os do costume se contentavam com as côdeas mais pequenas. A despeito das promessas e dos discursos, ninguém se assegurou de que tivéssemos todos direito às mesmas duas garfadas de atum, à golada de leite, à bolacha de água e sal e à fatia de pêssego de conserva – sem excepções nem diferenças.

Ainda estamos vivos, os dez milhões, apesar de agora ser óbvio que cada novo chefe de turno foi só mais um impostor: prometia levar-nos para fora da mina e, afinal, guiava-nos por caminhos escuros que apenas conduziam a galerias cada vez mais fundas, mais negras, das quais será ainda mais difícil sair.

É bem certo que, em vez de esperar que alguém venha por nós e abra o caminho que há-de levar-nos daqui para fora, podíamos começar a esgravatar a terra com as próprias unhas e a escavar o mais que pudéssemos (a despeito da sensação de que não há para onde fugir). Mas estamos como anestesiados e incapazes de um gesto. Mais do que presos na mina, parecemos ter ficado reféns da mão que, em vez de velar por nós, é o ladrão que nos vem ao bolso. Estamos sequestrados e sofremos de uma espécie de síndrome de Estocolmo, sempre dispostos a perdoar e a eleger aqueles que nos conduziram ao fundo do buraco.

Quando, no início de Agosto, se soube que havia trinta e três homens vivos presos no interior da mina de ouro e cobre de San José, no deserto de Atacama, a setecentos metros de profundidade, o governo chileno anunciou que precisaria de cerca de quatro meses para conseguir retirá-los do refúgio. Na semana passada, apenas 69 dias depois, os mineiros voltaram a ver a luz do dia e a respirar ar puro. Puderam, enfim, sorrir. Nós, porém, ainda cá estamos – no buraco do costume.