segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Os homenzinhos

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 28 de Setembro de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)



O suplemento Babelia do El País pediu a alguns escritores, entre aqueles que apresentam livros novos nesta época do ano, que explicassem como escolheram o tema do romance e em que momento começaram a escrevê-lo. Há respostas de vários géneros e para quase todos os gostos, mas nenhuma tão pouco esclarecedora e ao mesmo tempo tão brilhante como a de Juan José Millás - pura literatura.

Em benefício da verdade e da mais elementar gratidão, devo esclarecer que o título genérico destas crónicas, O bisturi, foi inspirado pelo livro O Mundo, de Millás, que me comoveu e do qual guardei precisamente a passagem relativa ao facto de o pai do autor/narrador ter sido o primeiro, em Espanha, a fabricar um bisturi eléctrico, “que cauteriza a ferida ao mesmo tempo que a abre”: “Quando escrevo à mão num caderno, como agora, acho que me pareço com o meu pai (...), pois a escrita abre as feridas e cauteriza-as ao mesmo tempo”.

Não li, antes e depois disso, mais nenhum livro de Juan José Millás, o que talvez constitua um lapso bastante comprometedor. Para o caso, não interessa. A resposta do escritor espanhol ao questionário do Babelia é tão boa que, aconteça o que acontecer, faço questão de ler Lo que sé de los hombrecillos (qualquer coisa como O que sei dos homenzinhos).

Explica Millás que teria sete ou oito anos quando, um dia, viu sair um homenzinho de dentro de um dos seus sapatos. A pequena criatura fugiu e desapareceu debaixo da cama, mas o infantil Juan nunca mais voltou a vestir-se sem antes verificar se não haveria algum homenzinho dentro do calçado. Esta relação secreta, acrescenta Millás, durou até à actualidade. “Há coisa de três ou quatro anos, apareceu-me em sonhos um destes homenzinhos, criticando-me por nunca ter escrito um romance sobre eles. Argumentei que não sabia o que fazem os homenzinhos. Respondeu-me que eles também não sabiam o que eu faço e nem por isso negavam a minha existência. Comecei a escrever Lo que sé de los hombrecillos nessa mesma noite e o livro saiu sozinho, como se me tivesse sido ditado. Ao terminá-lo, eu já sabia o que fazem os homenzinhos e inclusive o que fazia eu. Aprende-se alguma coisa com cada romance”.

Releio a resposta de Millás e facilmente me convenço de que os homenzinhos que viviam nos seus sapatos são, como o bisturi, uma extraordinária metáfora. Pensando no assunto, talvez se deva concluir que toda a escrita é sobre misteriosos homenzinhos, independentemente do tamanho que tenham e do sítio onde vivam. Escreve-se (romances, poemas, crónicas) para investigar a vida deles, para saber de que tratam e que motivos levam os homenzinhos a fazer uma coisa e não outra completamente diferente. Quando se escreve ficção, inventa-se uma actividade que lhes convenha, frases que possam dizer, uma existência, mas apenas queremos descobrir que vida é, afinal, a nossa. Às vezes, fica-se um pouco mais perto de o saber. Noutras alturas, porém, não se tem ânimo, sequer, para abrir mais uma ferida.