segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Coisas que acontecem

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 14 de Setembro de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)



Acredite-se ou não em coincidências, elas simplesmente acontecem. Irrompem no quotidiano de um modo poderoso e estranho, como espantosas anomalias, e desbaratam todas as tentativas de normalizar o real. Poderia, aliás, escrever que as coincidências se manifestam, mas correria o risco de ser mal interpretado. Positivista e nada místico, não atribuo nenhum significado transcendente às coincidências. Fico apenas maravilhado – como suponho que aconteceria se aparecesse um oceano na Lua, ou se, contra todas as evidências, viesse a ser demonstrado que o país tem sido bem governado nos últimos 20 anos.

Qual é a probabilidade de apanhar duas vezes, num só dia, o mesmo táxi na enorme cidade de São Paulo? Ridícula. Mas, como sofro da extravagância das coincidências, já me aconteceu. Também em São Paulo encontrei, certa noite, um conhecido sentado no bar do hotel onde estávamos ambos instalados. Outra noite, em Luanda, levaram-me a uma esplanada sobre a baía e, ao subir as escadas, deparei com um conhecido que, fiquei a saber, tinha ido trabalhar para Angola e, por coincidência, ali estava diante de mim.

Estas coisas acontecem-me com alguma frequência, mas desdenho, ainda assim, da sua ínfima e poética possibilidade. Numa das vezes que fui a Londres, a minha filha, inconsciente das leis que regem a matemática das probabilidades, sugeriu que talvez pudesse encontrar uma amiga dela que também lá estava. Eu, estúpido, duvidei e até gracejei com a adolescente inocência da Maria Miguel. Pois bem: encontrei a Margarida e os pais da Margarida logo na minha primeira manhã em Londres, como que prodigiosamente materializados diante de mim, numa rua de Portobello, apenas para amesquinhar o meu cepticismo.

Este fim-de-semana voltei a ser acometido pelo espanto. Eu tinha escrito uma crónica para o jornal A Nação, de Cabo Verde, na qual discorria sobre o modo como os cartazes anunciando os concertos de Mayra Andrade deixam o Porto mais bonito, com centenas de risos perfeitos e enternecedores despontando até nas esquinas mais sujas e escuras. O título da prosa era “Quando Mayra vem à cidade”, ainda que a cantora cabo-verdiana fosse cantar a Braga e ao Porto restasse, desta vez, a consolação de acolher a sua imagem impressa. No sábado, porém, quando melancolicamente revolvia o café depois do almoço, Mayra Andrade, em carne e osso, entrou no restaurante onde eu estava – como uma visão extraordinária.

Graças a outras coincidências que não vêm ao caso, sentei-me na mesa de Mayra. Como as conversas seguem também, às vezes, rumos improváveis, falámos do big-bang, da velocidade da luz, das viagens interplanetárias e de outros mistérios que o universo infinito guarda. À noite, em Braga, Mayra cantou Seu, palavra que, em crioulo, significa céu. A letra fala da força do destino e de uma estrela brilhante que mostra caminhos. É uma explicação um tanto rebuscada. Mas, por um instante, até parece fazer sentido.