domingo, 10 de outubro de 2010

A casa está em silêncio. O fim-de-semana também.

Não fui, afinal, subir o Douro de comboio e, como sucede sempre que deixo de fazer alguma coisa, tenho excelentes pretextos para ter agido assim e não de outra maneira. Poderia entediar algum eventual e extemporâneo leitor com a minuciosa enumeração dos meus aborrecimentos, mas não vejo, também neste caso, necessidade de ser exaustivo. Não fui, simplesmente, por que não me apeteceu. Fiquei, em vez disso, constatando a suave melancolia das sombras que produz o sol fraco de um dia que não decidiu ainda se há-de ser de chuva ou não, deixei-me ficar a dormir sonhos estranhos e a tossir uma bronquite que creio poder atribuir à chuva de sexta-feira e ao facto de não ter tirado as botas molhadas quando cheguei a casa para comer fois gras e queijo de cabra, para sobretudo beber vinho tinto, que é a melhor forma de esquecer que há lá fora um mundo de coisas inóspitas e com má cara, como a chuva, o vento e as raparigas que não sorriem. Ficar em vez de ir tem, a seu modo, algum tipo de compensação, na medida em que me permite avançar na leitura de Os Trinta Dias do Homem Mais Pobre do Mundo, o primeiro romance do Mário Lúcio de Sousa, cujo Novíssimo Testamento e recém-estreado livro devo apresentar no final desta semana; ler a entrevista que Juan José Millás concedeu ao Babelia do El País a propósito do lançamento de Lo que se de los hombrecillos; e, enfim, descobrir que não estou incapacitado de escrever ficção. Inaugurei um caderno Moleskine por voltas das sete da tarde e, de uma assentada, escrevi várias páginas de um longo parágrafo que pode vir a ser o início de uma coisa qualquer, ou não, pois ignoro cada vez mais do que possa depender o avanço desses trabalhos ficcionais. Vai-se tornando evidente, porém, que a invenção em mim de alguém que é ou pretende ser escritor tenha sido, seja ainda, a mais extraordinária literatura de que fui capaz. Reconheço-o e, porém, lamento não ter chegado a concluir decentemente também este trabalho, pois o escritor que me inventei saiu-me um pouco mal acabado, desinspirado, torpe, e se penso nisso não é difícil perceber que poderia, sem muito esforço, ter concluído melhor esta invenção, criando, ao menos, um escritor cuja obra pudesse ser interessante de seguir, ou alguém efectivamente talentoso. Mas, bem vistas as coisas, ter inventado um escritor não é muito diverso de ter inventado uma viagem de comboio para fazer num domingo qualquer. Em todo o caso, não fui, não vou a parte nenhuma. A casa está em silêncio. O fim-de-semana também. É domingo na minha vida.