(crónica da coluna "Crioulizado" desta quinzena para o jornal A Nação, de Cabo Verde)
Imagino, mesmo a esta pouco conveniente distância, que na semana passada quase não se tenha falado de outra coisa por aí: a visita do cidadão português e presidente da república, Aníbal Cavaco Silva. Tratando-se, como se tratava, de um exercício de diplomacia, não espanta que o senhor Silva se tenha desdobrado em declarações de grande simpatia, ora afirmando que Cabo Verde está no coração dos portugueses, ora louvando o carácter exemplar da economia cabo-verdiana. “Inspirador”, considerou, mesmo sem, desta vez, ter ido mergulhar nas águas cálidas de Quebra-Canela.
Do que o presidente da república portuguesa se esqueceu é que a economia de Cabo Verde, para ser o bom e inspirador exemplo que é, depende em grande medida das remessas dos seus filhos na diáspora, os quais, por seu lado, dependem (também) das obras públicas que por cá se fazem. E não terá sido conveniente, a este propósito, recordar as declarações da amiga, ex-ministra e sucessora de Cavaco na liderança do PSD, Manuela Ferreira Leite, a qual, ainda há um ano, desaconselhava a realização de obras públicas precisamente porque apenas davam emprego aos ucranianos e cabo-verdianos.
Mas Cabo Verde, para ser o bom exemplo que é, não precisa apenas das obras públicas de Portugal e da Europa, das casas para limpar e do alforge laboral da Cova da Moura. Necessita também do investimento, das receitas e dos postos de trabalho que são gerados por aquela que é hoje uma das principais actividades económicas do país: o turismo. Ora, a este propósito, o que ainda há bem pouco tempo declarou o cidadão Silva foi que os portugueses deveriam demonstrar algum patriotismo e fazer férias em Portugal, abstendo-se, assim, de viajar para o estrangeiro.
Também neste particular, suponho, ninguém deve ter cometido a indelicadeza de quebrar a hipocrisia e as conveniências diplomáticas para recordar ao ilustre visitante o teor das suas declarações recentes, as quais, a serem seguidas pelos portugueses e outros europeus que habitam em economias em crise, deixariam de viajar para Cabo Verde e privariam o país de uma das suas fontes de riqueza, de um dos motivos da sua exemplaridade.