segunda-feira, 19 de julho de 2010

Os valores deles

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 22 de Junho de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)



O diabo está nos pormenores. E a estupidez humana, ainda que seja perfeitamente capaz de se manifestar em grande escala, revela-se também nas mais pequenas coisas – e em qualquer raça, entre gente de todas as cores e com os pretextos mais imbecis. A semana que passou foi particularmente fértil neste aspecto. Escondidas entre o anúncio do apocalipse financeiro europeu e a festa do futebol na África do Sul, não faltaram, nos jornais, notícias capazes de causar inquietação.

Em Espanha, depois de várias autarquias catalãs e andaluzas terem votado regulamentos que proíbem o uso de véus islâmicos em edifícios públicos, e de o próprio Governo ter anunciado a possibilidade de criar legislação nacional sobre o assunto, um político de uma aldeia de 109 habitantes, Tarrés, apresentou uma moção destinada a banir as burcas e os niqab do convívio social. Pormenor: não mora em Tarrés um único cidadão imigrante, nem árabe, nem negro, nem sul-americano, nem chinês, nem português, nem nada. Mas “é melhor prevenir do que remediar”, argumentou Daniel Rivera, o autor da moção, citado pelo El País.

Em Israel, onde o diabo se manifesta regularmente, oitenta judeus asquenazes (oriundos do leste da Europa) recusam-se a autorizar que as suas filhas estudem na mesma escola que é frequentada, pasme-se, por meninas judias sefarditas (originárias da Península Ibérica). Instados pelo Supremo Tribunal de Justiça a pôr fim a esta segregação, os pais asquenazes mandaram dizer que preferem a prisão.

No Egipto, o sindicato dos actores moveu um processo contra um actor famoso, Khaled al-Nabawy, o qual corre o risco de enfrentar uma longa suspensão. O seu crime: cruzou-se na passadeira vermelha do Festival de Cannes com uma actriz israelita, Liraz Charhi, cumprimentou-a e, instado pelos fotógrafos, abraçou-a. Quando regressou a casa, no Cairo, depois de a fotografia ter sido publicada nos jornais egípcios, soube que estava a ser acusado de “normalização de relações com Israel”, crime ainda punível pela lei.

O pretexto para a intolerância é, nestes casos, sempre o mesmo. Em Espanha, como noutros países europeus, invocam-se os valores que consideram que o véu islâmico humilha as mulheres, mesmo as que o usam de livre vontade. Em Israel, os valores asquenazes não permitem misturas com sefarditas. No Egipto, defendem-se os princípios que não autorizam abraços a judeus e que, há algumas semanas, forçaram o “ateu e homossexual” Elton John a cancelar um concerto previsto para o Cairo. Se não me equivoco, trata-se do mesmo género de valores que levaram o jornal do Vaticano a atacar José Saramago depois de morto.

Egípcios, espanhóis, vaticanistas e israelitas asquenazes resultam, assim, muito parecidos com o grupo de senhoras do Estoril que são contra o casamento entre homossexuais e estão empenhadas em desencantar um candidato presidencial que defenda os... valores da família. São, todos, indivíduos carregados de certezas e da vontade de impô-las aos outros. Mas, sendo tão semelhantes, não conseguem viver juntos.