segunda-feira, 7 de junho de 2010

Ménard não sente frio

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 11 de Maio de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)



Li, um destes dias, sobre uma performer transexual francesa, Philippe Ménard, a qual tem calcorreado o mundo, de Tóquio a Bogotá, com um estranho espectáculo assente na relação que mantém com o gelo. Faz malabarismos, move o corpo lentamente e cria um ambiente de vertigem e psicadelismo, contracenando com centenas de litros de água congelada. E alega que nunca na vida sentiu frio. Nunca.

Leio sobre Philippe Ménard e, estranhamente, penso em Gisberta, o transexual brasileiro encontrado morto em Fevereiro de 2006, num edifício abandonado do Porto, no poço de um elevador sem elevador para onde tinha sido lançado por um grupo de jovens imbecis. Penso em Gisberta, sim, mas não por imaginar o frio que Gisberta sentiu enquanto agonizava no fundo de um buraco de um prédio inacabado. Recordo Gisberta porque, neste mesmo dia em que tomo conhecimento do espectáculo de Philippe Ménard, leio também sobre os alunos de uma escola de Oeiras que, na semana passada, receberam com insultos e pedradas um grupo de rapazes travestidos. Quem assistiu à cena descreveu-a recorrendo à expressão “chuva de pedras”. Talvez influenciado pela arte de Ménard, invoco, por isso, a imagem mental das pedras de gelo que resultam de certos fenómenos meteorológicos e chovem efectivamente sobre as pessoas, os carros e as casas, provocando, às vezes, mais danos materiais do que aqueles que causou a chuva de pedras lançada sobre o quase carnavalesco grupo de travestis de Oeiras.

Creio, não sei porquê, que Philippe Ménard há-de gostar de saraivadas e do gelo efémero do granizo, da neve e da geada, mas isto nem sequer vem ao caso, pois, no mesmo dia em que leio sobre o seu arrepiante espectáculo e acerca da chuva de pedras caída nos arredores de Lisboa, tomo ainda conhecimento, por um jornal da comunidade portuguesa em França, da agressão de que foram vítimas, no Parque Belleville, em Paris, três dos transexuais que protagonizam o filme Morrer como um homem, de João Pedro Rodrigues, acabado de chegar às salas de cinema francesas. Em Paris, como em Oeiras, os transexuais foram insultados e agredidos com pedras e garrafas vazias. Foram perseguidos, assaltados e talvez tivessem acabado mortos, agonizando ao frio no fundo de um poço de um prédio abandonado, se não estivessem em igualdade numérica e não tivessem abandonado o local antes que algo pior sucedesse.

Leio, então, a descrição de Philippe Ménard visitando uma fábrica de gelo em Bogotá, na Colômbia, a estranheza que a sua aparição provoca entre os operários e, depois, o modo como recebe as amostras de gelo nas mãos, com delicadeza, “com a ternura com que alguns acariciam um animal ou um filho”. Houve um tempo em que também a fecharam em hospitais psiquiátricos, a maltrataram, lhe chamaram louca e doente. Agora que é uma artista relativamente consagrada, já não lhe atiram pedras – nem sequer pedras de gelo. Depositam-lhas nas mãos. Ela, porém, não sente o frio. Nunca sentiu. Não sabe o que é chamar-se Gisberta e morrer no Inverno do Porto.