(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 2 de Fevereiro de 20010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)
Um grupo de investigadores pretende exumar o cadáver de Leonardo da Vinci e efectuar testes que permitam determinar se o mestre italiano se inspirou no próprio rosto para pintar a célebre Mona Lisa. A teoria não é nova, mas, bem vistas as coisas, é bem menos rebuscada e estrambólica do que outros enredos que, ao longo do tempo, foram sendo suscitados pela Gioconda. Confesso, todavia, o meu absoluto desinteresse por aquilo que a mórbida bisbilhotice possa permitir apurar. Ainda que o rosto da Mona Lisa seja o de Leonardo, o sorriso dela continuará tão impenetrável e enigmático como até agora. E a biografia do extraordinário matemático, engenheiro, anatomista, inventor e artista continuará igualmente exposta às mais diversas especulações.
Interessou-me, isso sim, a história do quadro Retrato de uma mulher chamada La Belle Ferronière, vendido na semana passada pela leiloeira Sotheby’s. Custou ao novo dono 1,5 milhões de dólares, montante ao qual não é alheio, segundo o The New York Times, precisamente o facto de não ser uma pintura de Leonardo da Vinci. A explicação é simples: La Belle Ferronière foi oferecido como presente de casamento, em 1919, a um casal do Midwest dos Estados Unidos, o qual, quando tentou vendê-lo, foi acusado de estar a promover uma fraude com um falso Leonardo. O tribunal acabou por dar razão aos Hahn, mas os vários testes realizados durante as décadas seguintes estabeleceram que La Belle Ferronière, com o seu olhar penetrante, não é, afinal, uma obra de da Vinci. No leilão da semana passada, aliás, a Sotheby’s atribuiu o retrato a um “seguidor” do mestre italiano, “provavelmente anterior a 1750”, o que não impediu que a tela fosse vendida pelo triplo do montante esperado.
Olhando o rosto de La Belle Ferronière, pintado a três quartos como o da Gioconda, notam-se outras semelhanças com o retrato da Mona Lisa: a pose, as maçãs do rosto salientes, a boca pequena, o pescoço nutrido, uma certa escorrência da luz e o formato da cabeça que, se calhar, poderá também ser compatível com o crânio de Leonardo da Vinci. As diferenças entre os retratos revelam-se, porém, muito mais interessantes.
A Mona Lisa será ambígua e misteriosa, sim, mas também parece uma mulher choca, mortiça, austera e dissimulada, feia e sem graça. Já La Belle Ferronière tem cores fortes e uma boca mais suculenta. Parece uma mulher com certas vaidades. Usa um colar preto e amarelo que dá três voltas ao pescoço antes de se afundar no peito, e um vestido vermelho com folhos e debruns dourados. O olhar dela é mais vivo, questionador, quase desafiante sob o arco bem definido das sobrancelhas; o rosto fechado trai uma centelha de volúpia e malícia e a pele apresenta uma palidez saudável.
Não sei o que pensam os críticos e os investigadores, mas é provável que La Belle Ferronière não chegue jamais a estar exposta nas paredes do Louvre, onde não será fotografada por hordas de turistas. Já a mulher que ela foi daria, decerto, muito mais vibração a uma sala. E a uma vida.