(crónica da coluna "Crioulizado" desta quinzena para o jornal A Nação, de Cabo Verde)
Gosto de coincidências e tenho a sensação, às vezes, de que possuo o segredo do mecanismo que as produz. Ou melhor: não sei exactamente o que fazer para que dois ou três acontecimentos ocorram de modo a formar uma coincidência, mas noto que, em certos dias, basta um gesto simples e despreocupado para que uma torrente de coincidências jorre sobre a minha cabeça. Ontem foi um dia desses: aconteceu quase como se várias crónicas anteriores coincidissem num só dia, no espaço de poucas horas.
Terminámos de almoçar e o Nuno sugeriu passar numa leitaria próxima para comprar um éclair. Eu sugeri que, em vez disso, fôssemos tomar um grogue ao restaurante da dona Iva, de que já aqui falei. O Nuno e a Vanessa aceitaram a proposta – e depois deixaram-me a beber grogue sozinho, coisa de que jamais desdenho. Peguei no cálice, inspirei profundamente para sentir o cheiro da cana e, na verdade, foi como se uma poderosa magia me invadisse, despertando o fragoroso eflúvio das coincidências.
Quando voltei ao trabalho, não notei, sequer, que me entretinha a rever o meu mais recente conto cabo-verdiano, mas, ao final da tarde, quando ia a caminho do metro, acabei por me cruzar com o Bilan, o qual, desta vez, me reconheceu e até tinha lido a crónica que, há semanas atrás, lhe dediquei. Conversámos, pois, sobre essa coincidência e sobre o facto de ambos gostarmos da fotografia antiga em que se vê um zepelim pairando sobre o mar da Laginha. Eventualmente mais espantoso, o Bilan insistiu em falar comigo apenas em Crioulo, embora eu não fosse capaz de lhe responder na mesma moeda, vendo-me obrigado a recorrer ao Português. Combinámos, para um dia destes, uma catchupa e um groguim, precisamente na dona Iva e também com o actor Flávio Hamilton, para prestarmos algum tipo de homenagem ao misterioso espírito dos bons encontros.
À noite, depois do jantar, pus o Ildo Lobo a tocar na aparelhagem e um torpor enorme tomou conta de mim mal escutei os primeiros versos dessa espantosa canção que é Regresso: “Volta cretcheu, fazêm feliz nem que pa um dia”. Dormi no sofá e foi então, creio, que tomei consciência da espantosa força das coincidências que nesse dia me tinham acontecido. Quando acordei, imaginei que tudo pudesse ter sido um sonho ou, pior do que isso, que me sucede, com a idade, ficar um pouco confuso, para não imaginar nada mais grave. Felizmente, porém, tinha adormecido com a cabeça no colo da Vanessa, que me acompanhou no grogue de depois de almoço e estava comigo ainda quando encontrei o Bilan na Rua de Fernandes Tomás.