quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Lápis cor-de-rosa




Podia ter-me apaixonado por Bety se não me tivesse apaixonado antes pela história dela. Quis, ao ouvi-la, realizar um documentário. Depois ocorreu-me escrever um romance ou um conto. E depois o documentário outra vez. Mas agora tenho quase a certeza de que não farei coisa nenhuma. Há emoções que não se explicam - são coisas de guardar só no peito.

Bety. Vi-a atravessar a esplanada da residencial Sodad, no topo de uma engelha vulcânica da cidade do Mindelo, em Cabo Verde, e pareceu-me que presenciava uma aparição pagã. Ela é uma mulher alta e sem erros, como uma estátua grega, e tinha a cabeça envolta num pano, como outra africana qualquer. Vi-a e pareceu-me possível que Bety flutuasse entre as mesas em vez de caminhar, sorrindo como uma soberana que saudasse os súbditos com uma peculiar cumplicidade. Não teria, ainda assim, ousado importuná-la se não tivesse ela condescendido em falar comigo na descida da Rua Franz Fanon. "Boa tarde", disse - e eu estremeci, estranhando ver Bety conviver com mortais comuns e sorrir exibindo os dentes encantadoramente tortos (suponho que por desfastio, só para imitar as imperfeições humanas).

Feitas as apresentações, soube que Bety é angolana de Benguela, que se mudou para a cidade da Praia ainda criança, quando a insanidade da guerra chegou ao quintal da casa dela, e que em Cabo Verde se fez bailarina e coreógrafa da companhia Raiz di Polon. Bety contou isto à mesa, no fim de um almoço ao qual se juntou o Valdemar, um actor do Porto que, na mesma altura, fugiu de Benguela para Gondomar: não se conheciam, mas tinham chorado ambos, assustados, quando, meninos postos a salvo da guerra, escutavam os rebentamentos do fogo-de-artifício dos arraiais populares.

Bety desfiou, depois, memórias de uma infância aparentemente feliz, com uma mesa grande debaixo da sombra de mamoeiros e árvores de fruta-pão, e, pondo-se sonhadora, disse a frase que nunca mais esqueci: "Penso muitas vezes que vou voltar um dia à minha casa e que, quando chegar, vou encontrar o meu saco azul no sítio onde o deixei pela última vez; e que, lá dentro, estarão o caderno de capa preta e o meu lápis cor-de-rosa".

Em torno da mesa havia uma tarde muito luminosa e a baía do Mindelo preguiçava deliciosamente, bonit de dar um aperto bom no korasom e espantar as melancolias para longe. Quando ouvi a frase, aquela frase, senti, porém, que a paisagem se tinha apagado, que não fazia já falta nenhuma, como se fosse possível viver apenas dentro daquilo que Bety contava com palavras lentas e doces: as memórias de um sítio de África que a guerra transtornou e o sonho de regressar um dia para reencontrar a infância interrompida e transplantada para um desses grãos de pó que compõem o arquipélago de Cabo Verde. Tive vontade de levar Bety pela mão de volta à casa de Benguela para resgatarmos juntos o poético resíduo da menina que ela tinha sido: o lápis cor-de-rosa.

Crónica publicada no P2 do Público, no dia 9 de Junho de 2009