domingo, 23 de fevereiro de 2014

Ficção e realidade


(texto da minha intervenção na mesa da passada sexta-feira nas Correntes d'Escritas)

A minha bisavó Emília era capaz de, com espantosa precisão, adivinhar as horas olhando para a posição das sombras das árvores no chão, mas nunca aprendeu a desenhar uma letra. Também nunca precisou de ler um livro.

Gostava muito, por isso, de ainda poder confrontá-la com uma frase que diz, sem espinhas, que cada livro é a antologia corrente da existência (como a que aqui nos foi proposta). Agora, porém, e como ela está morta, só posso imaginar a minha avó Mila a mastigar a língua entre as gengivas sem dentes e a relancear em redor os olhos quase cegos para ter a certeza de que eu estaria a fazer troça dela. Diria, creio, alguma coisa como “ui, credo!, num sei que dizes”.

Talvez a organização das Correntes tenha este ano pretendido pregar-nos também uma partida semelhante às que nós fazíamos quando nos púnhamos a fumar diante da nossa bisavó sem que ela pudesse ver-nos. Cheirava-lhe a queimado, mas nós dizíamos que havia de ser alguma coisa a arder na fogueira da cozinha escura e encardida. E, como a avó Mila, tenho vontade de encolher os ombros e de fazer de conta que não percebo nada de livros e antologias.

A minha dificuldade, no caso do tema desta mesa, começa logo na expressão “antologia corrente da existência”, que não sei bem o que significa. Só a expressão “corrente” tem para cima de vinte significados possíveis. “Existência” é uma daquelas palavras totalitárias que facilmente inclui a vida e a realidade inteiras. E “antologia” tanto pode ser uma simples colecção de textos como o estudo das flores.

Supondo, ainda assim, que a expressão “antologia corrente da existência” designa, neste caso, uma colecção actualizada da vida ou da realidade, e que esta selecção transitará para cada livro que escrevo, creio sinceramente que acabaremos por não concluir grande coisa.

Algumas pessoas, é verdade, confundem os livros que escrevo com a realidade. Talvez fiquem ainda mais convencidas dessa ligação quando lhes conto que esta ou aquela passagem de uma determinada ficção tem alguma correspondência com factos realmente ocorridos. E não adianta nada explicar-lhes que, depois de passar pelo filtro da literatura, os acontecimentos já não o são; passam a ter uma vida independente e a ser verdades às quais a ficção impôs as suas regras — como quando se inventa um unicórnio ou um cavalo alado a partir da imagem concreta de um animal existente.

Assim, os livros de ficção que escrevo são sempre, de algum modo, a tal “antologia corrente da existência”. Ao mesmo tempo, porém, não o são de modo nenhum. Escrevê-los é sempre estar numa realidade paralela a esta, num mundo onde o exercício da literatura torna possíveis coisas que a realidade não permite — coisas como atravessar África a pé, inventar um romance enquanto conto mentiras nos transportes públicos ou ser a estrela infantil de um circo um bocado cigano. Todavia, escrever literatura é também estar dentro de uma vida e de um corpo, da minha vida e do meu corpo, os quais, de algum modo, sempre encontram forma de contaminar a ficção, insinuando-se às vezes de uma forma que nem sequer é consciente, mas que não será, por isso, menos efectiva ou verdadeira.

Talvez seja verdade, portanto, que a ficção imita, às vezes, a realidade e a vida, constituindo-se na sua antologia corrente. Porém, e em termos estritamente literários, interessam-me mais os exemplos opostos. Aqueles em que a vida se transforma, de algum modo, numa antologogia corrente da ficção. Ou seja: o exacto contrário daquilo que nos foi proposto.

Já em anteriores edições das Correntes discorri, de resto, sobre as confusões que frequentemente se estabelecem entre a realidade e a ficção dos meus livros. Contei, por exemplo, como o sorriso imperfeito de uma rapariga cabo-verdiana de um romance que tinha acabado de escrever se materializou diante de mim dias depois, no intervalo de uma peça de teatro a que assistia na cidade do Mindelo.

Também uma ex-namorada gostou tanto de ler o romance “O Amor é para os Parvos” que decidiu transformar o final do livro numa espécie de realidade decepcionante e triste, dissolvendo-se no ar e deixando-me a falar sozinho, conforme sucede ao narrador desse livro já antigo e que não era a antologia corrente de coisa nenhuma.

Passava bem, neste caso, sem que a realidade me imitasse a ficção, quanto mais não seja porque a vida dói infinitamente mais do que a literatura. Mas, de um modo geral, as histórias que tenho para contar sobre o modo como a ficção e a realidade se sobrepõem são mais simpáticas.

Ainda recentemente, e para terminar, um jovem leitor garantiu-me que tinha visto, numa ponte de Paris, ou numa rua, já não sei bem, o acordeonista húngaro que descrevo no romance “Uma Mentira Mil Vezes Repetida”. Expliquei-lhe que inventei aquela personagem por sugestão involuntária da cantora cabo-verdiana Mayra Andrade, a qual, num concerto a que assisti, referiu de passagem um músico que costumava ver tocar quando atravessava uma ponte a caminho de casa. Tudo o resto, o modo de tocar, a aparência física, o repertório, inventei-o enquanto escrevia o romance. O rapaz, porém, garantia que tinha visto o acordeonista do livro com os próprios olhos, tal e qual, exactamente aquele que eu havia escrito, o que de algum modo é o mais incrível que pode acontecer a alguém que cria ficções. É absolutamente maravilhoso e mágico poder imaginar que os meus bonecos de papel e tinta ganham vida própria, se desprendem das páginas e vão, melancólicos e concretos, tocar acordeão numa ponte de Paris.

Se isto é uma coisa possível? Claro que não. Mas a minha bisavó Emília morreu no final do século XX sem acreditar que houvesse homens capazes de viajar a caminho das estrelas. Isto seria, decerto, outra das coisas que nós, os mais novos, inventávamos a fim de a arreliar e confundir. Andar um homem caminhando na lua era talvez a maior ficção que ela podia imaginar. E, contudo, parece que foi verdade.