segunda-feira, 31 de outubro de 2011

A parábola da porca*



Terminei a crónica da semana passada com uma graçola que envolvia o presunto, mais concretamente o seu VII congresso mundial, mas não é por isso que agora aqui convoco o porco. Ou melhor: a porca. E não o faço, sequer, para recordar a peculiar personagem do romance Estranhos Perfumes, de Marie Darrieussecq, o qual, se bem me lembro, conta a história de uma mulher que se metamorfoseia em suína. A heroína desta crónica será, antes, uma prosaica reca de Terronhas, lugar da freguesia de Recarei, no concelho de Paredes, onde o acaso engendrou, parece-me, uma bonita parábola do tempo em que vivemos.

Se eu mandasse alguma coisa, o caso da porca de Terronhas havia de ter sido lido nas homilias de domingo. Como não mando, limito-me a imitar os apóstolos e a contar a história mais ou menos como a li, há dias, numa página do Jornal de Notícias. Era assim: um certo homem tinha comprado uma “porca caniça para sustento da casa”. Planeou, pois, a matança, da qual haveria de resultar uma boa quantidade de febras e rojões, carne para chouriças e pelos menos dois presuntos de lei. A fêmea, porém, tinha sido anteriormente emprenhada. Dela nasceram quinze porquinhos, acrescentando bastante à depauperada economia daquela família. O homem cogitou, entretanto, nova matança, mas os demais beneficiários do animal consideraram o caso e pareceu-lhes que talvez não fosse má ideia levar a porca ao porco, para ver se dali lhes vinha lucro ainda maior. E foi, pois, a suína posta ao porco varão, o qual, cumpridos os trâmites naturais, deixou a reca outra vez de esperanças. Nasceram-lhe, desta vez, vinte leitões. Como, porém, a porca dispõe apenas de catorze tetas, não era já capaz de amamentar todas as crias, as quais correm risco de vida.

Li a notícia e, influenciável como estou – com os nervos em franja e disponível para ir para a rua gritar –, pus-me a matutar no caso da porca. Pareceu-me, por exemplo, que a dita suína se assemelhava ao contribuinte-tipo lusitano, cuja existência, se formos a ver bem, se justifica pela necessidade de alimentar o seu legítimo proprietário, o Estado. Este descobre, por um golpe do acaso, que a porca pode render muito mais do que o inicialmente esperado, sendo capaz de se reproduzir e de, assim, gerar mais e mais receitas, e, consequentemente, sustentar mais e mais gastos, Mercedes para aqui e subvenção para ali, favorzinho deste lado e tachinho daquele, assim sucessivamente até ao ponto em que a porca-contribuinte já não é capaz de alimentar as crias, por manifesta falta de tetas para tanta boca esfomeada refocilando nos restos gastos da depauperada suína.

Sendo apenas uma notícia de jornal, e não um caso escrito no livro sagrado, o episódio da porca de Terronhas padece, porém, de um inconveniente desagradável. Ao contrário do que sucede nas parábolas da Bíblia, como em Lucas 13:11, não virá nenhum milagreiro pôr a mão sobre a fronte da economia desgraçada e doente, que anda curvada há muitos anos e não pode de modo algum endireitar-se. A porca já deu o que tinha para dar.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 25 de Outubro de 2011