Possuo um demónio que, muito de vez em quando, se materializa sobre o meu ombro esquerdo, aquele que mais me dói, e ordena, murmurando-me ao ouvido, que lhe escreva um conto. Sei que se trata de um espírito maligno porque há poucas coisas mais improdutivas e inúteis do que a composição de uma ficção que ninguém lerá. Mas trato de lhe obedecer. Que remédio. Adquiri, com o passar dos anos, certo respeito pelos diabretes obscuros e já nem sequer me ocorre opor-me à sua vontade ou argumentar isto ou aquilo. É muito provável que tenham a razão do seu lado e que eu esteja condenado a ser, no mundo dos comuns, a voz que eles já não possuem. Não me parece, seja como for, o pior dos castigos. Mas lamento, e não imaginais quanto, ser desprovido do talento suficiente para que esses malvados se considerem satisfeitos com aquilo que elaborei e deixem de me perseguir de modo implacável durante o resto do tempo, atazanando-se com dúvidas metafísicas que perfeitamente dispensaria.
Hoje, por exemplo, exigem-me que abandone a letargia e escreva. O busílis está em que não faço a mais pequena ideia sobre quê. Terei, assim, de inventar o conto de uma ponta à outra, coisa de que, sinceramente, me envergonho. Não está certo enganar assim os meus improváveis leitores, nem o meu demónio se compraz com tão pouco. Há-de desejar drama e sangue, alguma tragédia que se veja – enfim: algo de que não estou capaz.
Imaginemos, por instantes, o Esteves – não o da tabacaria, que esse era quase filósofo, mas outro Esteves qualquer. Que faria ele num conto? Suponhamos o Esteves com as mãos enfarruscadas de óleo, afadigando-se sobre umas roldanas que deviam ser capazes de mover algo e, todavia, não cumprem o seu ofício. O prático puxa e empurra, procura desemperrar este eixo e mais aquele, desembaraça um cabo e logo outro se prende às ordens de um rolamento inútil para tal labor. Desiste o Esteves? Era o que faltava. Sendo bruto, como é, o operário sabe, porém, que do seu esforço e da sua persistência depende o correto funcionamento da locomotiva interna que invisivelmente move a máquina do mundo. Sem o trabalho do Esteves não existiria universo. Também não haveria conto. Que remédio tem senão continuar a lubrificar os frágeis acessórios do incompreensível mecanismo e a forcejar para que tudo volte a andar regularmente?
Dir-me-ão, e não estarão equivocados, que deste modo nem o conto se move nem o pai almoça. O próprio demónio mo recorda entredentes, soprando-o com o hálito de enxofre dos mefistófeles. Resigno-me, por isso, a supor que, naquele mundo emperrado, bastante fora dos eixos, uma mulher inacreditável notará a presença do Esteves afadigando-se e deterá o seu caminhar de saltos altos para ver melhor em que actividade se entretém. Aqui, e somente agora, existe uma possibilidade real de pôr o enredo em marcha. Uma lasca destas é precisamente o género de coisa que faz uma ficção engrenar.
Sendo, todavia, implausível que uma mulher tão gostosa repare no Esteves e se insinue à sua consciência, de todo dedicada à máquina e aos seus interiores, convém considerar que a traquitana do mundo se acha escangalhada e que por isso mesmo o encontro se torna possível. A curvilínea criatura que se detém no cimo dos saltos altos é a anomalia que o mau funcionamento da geringonça produz. Se o Esteves pudesse sabê-lo e não fosse, também ele, uma peça da engrenagem, jamais se teria sequer dedicado a uma reparação tão pouco oportuna. Mas, agora que já viu a moça pelo canto do olho, que já lhe sopesou os volumes, experimenta a tentação do desleixo e da inércia.
E se não cumprisse o seu dever? E se limpasse as mãos ao farrapo sujo e fumasse um cigarrinho enquanto a espectacular primata ali está parada e, pelos vistos, um pouco perplexa, olhando-o como se procurasse compreender o trabalho a que ele se dedica?
Às malvas a máquina e o respectivo desarranjo – cogita o Esteves.
Não mais debruçado sobre a engenhoca, bípede erecto outra vez, o Esteves não parece completamente desagradável. Aparenta bom cabelo, grosso e penteado para trás como à força de brilhantina, e o porte reflecte a rudeza do trabalho braçal. Os pómulos são viris; as sobrancelhas, fartas; e tem um sorriso irónico na boca cheia de sangue e malícia.
Um homem é um homem, parece elucubrar a moça – e ela, por incrível que pareça, tem experimentado tão poucos. Fossem outras, aliás, as circunstâncias e nem sequer permitiria o atrevimento daquele olhar do Esteves. Arrebitaria o nariz e seguiria caminho, sobranceira e coquete. Mas já é tarde para tais frivolidades e o mundo, ela acha, está há dias como se andasse de pernas para o ar. Vê-se que as coisas não são como antigamente e desobedecem à lógica comum, conforme ela supõe que aconteça nas vésperas dos grandes cataclismos ou dos recontros entre potências militares e políticas. Sabe-se lá o que o futuro nos trará, justifica-se enquanto se recurva para alisar uma prega inestética que se formara nas meias de seda.
A partir de onde o Esteves a vê, não existe, porém, interstício onde caiba a mais pequena imperfeição. Tudo nela é harmonia celestial e música das esferas. Somente o meu demónio privado não se dá por satisfeito e quer saber como se chama a moça. Decido-me tão precipitadamente por Fernanda que o diabrete me enterra o tridente num nervo tenso do pescoço, talvez o trapézio ou um dos escalenos, e ordena que me esforce. Estavas a fazê-la tão bem, diz, tão perfeitinha, e estragas tudo com um nome banal, meu pedaço de asno. Rogo-lhe que se acalme e me deixe pensar, mas a impaciência dá-lhe para ser criativo: comunica-me que a lasca se chamará Caetana. Não me agrada, mas obedeço. Esteves e Caetana serve tão bem como Hades e Perséfone ou como Simão e Teresa. O busílis está em deliberar o que farão a seguir, quem dirá o quê e de que modo se porão de acordo o Esteves e a Caetana, visto que são, até ver, simples personagens sem livre-arbítrio e pouco mais do que decorativas, sobretudo ela, que trouxe um golpe de beleza à monotonia deste conto sem tom.
Imaginemos, porém, que a conversação comum entre dois humanos não carece de subterfúgios e pretextos prévios, sendo possível que comecem a conversar sem ser por nada, como surpreendidos a meio de um diálogo iniciado há pouco.
«Quem me dera ter sido guardador de rebanhos», diz o Esteves.
«Que género de rebanhos?», pergunta a Caetana.
«Rebanhos de nuvens. Ou de sonhos».
Ela sorri enlevada. Supusera que o Esteves fosse só um bruto – considerando o fato-macaco, as manchas de óleo nas mãos e o afã que antes dedicava a cabos e roldanas –, mas ele é, afinal, fino como um poeta. Caetana já não quer saber do cabelo e dos pómulos. Toda a sua atenção está concentrada na boca rubra, cheia de sangue e malícia, que logo após murmura:
«… e por minhas mãos mataria o lobo ou o dragão que ameaçasse o doce império desta fantasia».
O mundo, distraído o Esteves das suas obrigações, talvez tenha, entretanto, deixado de girar em torno do seu eixo. Certas porções da realidade desprendem-se e ameaçam cair. Nas laranjeiras despontam frutos azuis e de outras cores impossíveis. Há rios que correm para a nascente e cidades em que começou a chover de baixo para cima. Inúmeras gestações são interrompidas precocemente e um bebé avulso chegou a nascer com mais de cem anos. Contudo, quando o chão estremece, a Caetana e o Esteves atribuem o terramoto à emoção selvagem que os acomete. Deram-se aos mãos, sorriem como os tolos e é possível tenham já traficado juras e beijos.
«Devia voltar ao trabalho», diz o Esteves. «Não se imagina o que sucederá se a anomalia da orbe não for corrigida».
«Tenho-te a ti e isso me basta», interrompe a Caetana.
«Temo-nos um ao outro, meu doce amor».
«Um ao outro. Sim. E isso nos basta. Bebo nos teus lábios a poção que me alimenta, dos teus olhos tomo a luz que me alumia…».
Mas nisto, entre enormes abalos sísmicos, o sol fenece e, logo após, explode. Um turbilhão de fogo verga as árvores e os edifícios, esturrica os pássaros em pleno vôo. Os mares refervem. O céu colapsa e os rios secam; numa fracção de segundo se extingue a existência dos peixes e o viço dos nenúfares. Fecho os olhos para não ver tamanho horror e, quando os reabro, constato que não sobrou ninguém para ler o conto.