No obituário que dedicou a Franz Kafka, Milena Jesenská escreveu que o autor de Praga via o mundo com "tal nitidez que não conseguiu suportá-lo". É possível supor, por isso, que essa clarividência o tenha matado precocemente, embora, em todos os tempos, pelo menos uma pequeníssima parte dos seres humanos padeça também da consciência e do horror que nos faz ter a sensação de estar "a assistir ao fim do mundo" -- conforme hoje escreveu a Raquel Varela a propósito de um bebé que morreu em Portugal por falta de assistência do novo Serviço Nacional de Saúde Telefónico -- sem que, por isso, corramos a atirar-nos de uma ponte.
É relativamente indiferente discutir se dezenas de milhares de inocentes mortos em Gaza são mais ou menos suportáveis do que um bebé morto em Portugal, se um Trump é mais ou menos tolerável, mais ou menos perigoso, do que um Ventura, ou se a fome endémica em vastas zonas de África é mais lesiva da humanidade do que a crueldade bárbara do governo israelita ou do que a hipocrisia das potencias ocidentais, ou ainda se as alterações climáticas matam e matarão mais do que a triunfal marcha de séculos em direcção ao capitalismo selvagem. Mas, se tiramos a cabeça da bolha de existência trivial em que nos encerramos para que a vida se torne suportável, é impossível não ficarmos com a impressão de que estamos a assistir ao fim do mundo.
E, todavia, é muitíssimo improvável que o mundo acabe (e seja "apenas um pouco tarde", conforme um poema do Manuel António Pina). O mundo há-de sobreviver-nos e sobreviver aos nossos filhos e aos nossos netos, às contas que temos de pagar e às filas de trânsito, à estupidez de certos governantes, ao ódio fascista, às inúmeras tragédias humanitárias e ao nosso desaparecimento individual, que é, se calhar, o único mundo que realmente nos importa.
Mas ignorar a sensação de que se está a assistir ao fim do mundo não é, para muitos de nós, uma questão de opção ou de vontade. O mundo invade-nos e inquieta-nos mesmo quando e se o não desejamos. Se ainda nos indignamos e exasperamos, se esbracejamos e continuamos a escrever textos inúteis, é provavelmente para que sejamos capazes de o suportar e de continuar o caminho, mesmo se tudo nos parece nítido e terrível, e não parece haver solução ou saída.