quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

As vozes e os seus donos

 Não é necessário recorrer a Roland Barthes, ou a qualquer outro estudioso do fenómeno linguístico, para sabermos que a linguagem e a escolha das palavras nunca são inocentes. Nunca o foram e são-no ainda menos num tempo em que a palavra é um elemento essencial de manipulação e condicionamento das consciências, preparando-as para o novo tempo que já se adivinha cada vez mais próximo.

Vejamos, por exemplo, de que modo são designados os detidos que estão a ser libertados no âmbito do acordo de paz para Gaza. Os palestinianos são "prisioneiros", enquanto os israelitas são "reféns", embora nada de essencial os distinga. Que se saiba, uns e outros foram sequestrados por forças armadas (embora aos palestinianos lhes chamem "terroristas" e, aos israelitas, "soldados") e não foram julgados e condenados por qualquer crime.

Não certamente por acaso, os presos condenados em tribunal por invadir o Senado dos EUA, tentar um golpe de estado, destruir património público e matar e ferir agentes policiais, passaram a ser também designados como "reféns" pelo celerado que os indultou e que agora preside ao país.

É normal, assim, que o poder israelita use as palavras que melhor servem as suas intenções (basta ver o estado em que Gaza ficou para se perceber cristalinamente quais são) e que a hipocrisia ocidental (media incluídos) adopte aquela terminologia distorcida e destinada a condicionar a percepção que temos dos factos. O que não é tão normal é que cada um de nós o aceite acriticamente, sem qualquer reflexão, embora isso também possa ser explicado e justificado de várias formas (às quais aludi, por exemplo, no texto de ontem).

Também para redigir estas linhas, que quase ninguém lerá, procurei ser o mais criterioso possível na escolha das palavras. Faço-o para que se entenda melhor o que pretendo explicar, mas também para que a minha linguagem se adeqúe ao imperativo de consciência que as motiva. Uma sociedade incapaz de pensar e reflectir no que acontece ao seu redor, e de decodificar o que escuta, está necessariamente condenada a deixar-se enganar por vendedores de banha da cobra, mentirosos compulsivos e ladrões de bagagens em aeroportos.