quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Para evitar falar do Meireles - um conto à laia de presente de saturnália. Que as festas vos sejam aprazíveis.

Vinha para falar do Meireles, mas talvez não seja boa ideia.

Um dos defeitos do Meireles é ser ignorante. Faz parte daquela metade dos nossos compatriotas que só consegue perceber textos muito simples e, se calhar, dos quinze por cento que padece de analfabetismo funcional. O outro defeito dele é ser vingativo.

A probabilidade de o Meireles ler este texto (e ser capaz de o compreender) é, portanto, bastante reduzida. Mas não é impossível que algum intriguista mal-intencionado lhe vá contar que o empulhei por escrito e ele queira depois exigir satisfações.

É melhor deixar o Meireles em paz, até porque não tenho nenhum bom motivo para insultar a senhora sua mãe. Ela pode não ser responsável pelos defeitos dele. Nunca se sabe. O Meireles pode muito bem ser um canalha autodidacta, nisto educado pela universidade da vida como em quase tudo o mais (o que, aliás, se lhe nota bastante).

Falemos antes da mulher do Meireles, que é um assunto bem mais agradável. Chama-se Serafina e é muito popular entre os vizinhos. Estes dividem-se em duas facções: os que lamentam a pouca sorte que teve quando se juntou a uma besta como o Meireles e os que gostariam de a compensar pelas muitas contrariedades e pelos desgostos que o casamento lhe há-de impor. Coincidem ambos os partidos, porém, em considerar que, se está com o Meireles, a Serafina não deve jogar com o baralho todo. Tendo, também eu, a concordar com esta opinião, embora, desconfiado como sou, prefira não a adoptar como definitiva. Não me parece impossível, aliás, que a Serafina seja tão cabra e calculista quanto o Meireles é pulha, estúpido e rancoroso.

Explicarei porquê, evidentemente. Não quero que pensem que afirmo coisas à toa. Mas devo, antes disso, esclarecer que nunca toquei na Serafina. É possível que seja o único a poder gabar-se de tal façanha, mas não creio que isto possa constituir motivo de orgulho. Não me importava nada de lhe fazer o mesmo que os coelhos fazem com as respetivas fêmeas, ou então algo de mais demorado, só que tenho certo medo do Meireles e este atavismo tem sido suficiente para me desmotivar.

Perguntarão, imagino, se o energúmeno não assusta os outros vizinhos. Ignoro. É até possível que ninguém se tenha alguma vez posto na Serafina – para além do Meireles, quero dizer – e que a ambígua fama que ela adquiriu decorra de uma sucessão de equívocos e de julgamentos precipitados, e também do facto de não poucos varões se vangloriarem de lhe terem feito isto e aquilo, e de saberem como ela é por debaixo da roupa. Mas pode ser que o afirmem apenas para achincalhar o Meireles e para o castigarem pela sua estupidez. Ou que lhe ponham os cornos pelo mesmo motivo. Ou que procurem apoucá-lo para presumirem de valentes e compensarem a inveja e o medo que ele lhes suscite. Seja como for, existe também o risco de que o Meireles se inteire de uma coisa ou de outra e queira exigir explicações, o que me parece um perigo excessivo se o proveito não for igualmente grande. Mas os nédios braços da Serafina valem bem o sacrifício. Ou assim me parece.

A Serafina, às vezes, nem parece deste mundo, tão alheia aparenta estar aos triviais e mesquinhos problemas do bairro. Tem sempre um sorriso pronto para menosprezar cada contrariedade e nunca se lhe escutam lamúrias pelo preço da carne, pelos aumentos do gás e da luz, e pelo absurdo que agora custam os moletes, ou relacionadas com qualquer outra consequência que a carestia nos imponha. Também não é amiga de meter o bedelho em assuntos que lhe não digam respeito, nem perde tempo em falatórios e intrigas. Às vezes é possível convencermo-nos de que tudo o que faz é sorrir a quem passa, tão faceira e jovial como os mais bem-aventurados (que lépido riso tem!), e que nada pode causar-lhe arrelia, embora sempre nos ocorra quem é o marido dela e, por isso, intimamente nos apiedemos da sua desventura. Tem, além disso, o quadril generoso e um busto firme e farto, que acarreta sem o auxílio de sutiã; o cabelo é de um loiro luminoso e frisado, como de querubim, embora ninguém o tome por autêntico, o que em nada a desmerece aos nossos olhos. Quem dera que todas fossem como ela e tivessem metade do seu encanto. Talvez, se assim fosse, o Navalhadas ainda estivesse vivo. Que deus o tenha.

Com todas as virtudes que tem, o Navalhadas só fazia jus ao nome quando estava bêbedo, altura em que também se tornava atrevido e galanteador. Tendo em conta esta circunstância, facilmente nos convencemos, e sem que nos tenhamos postos de acordo, de que o Meireles o apanhou à falsa fé entre duas carraspanas, aquela que o levou para os braços da Serafina e a que já não chegou a apanhar. Fanfarrão como era enquanto lhe não acabava o gás, deve, entretanto, ter cometido alguma inconfidência no Café Central, da qual o Meireles se inteirou. Ninguém, bem entendido, tem provas de que isto tenha sucedido exactamente assim, desde que, claro, se negligencie o facto de a Serafina ter andado durante mais de uma semana com um olho à Belenenses e a mancar de uma das patas. A quem se atreveu a perguntar-lhe o que havia acontecido, garantiu que tropeçara numa carpete e que batera com a cabeça na quina da mesa de jantar, versão que sublinhou com uma das suas garridas gargalhadas, tão estrepitosa e bem-humorada como de costume. Mas, bem pensado, acaba por ser normal que ela disfarce todas as contrariedades e as mágoas que tenha. O Meireles é definitivamente uma cavalgadura, sendo quase certo que a mataria também a ela com as próprias mãos no caso de já não lhe servir, nem que seja para obedecer ao seu mando.

Agrada-me pensar que, ao menos, o Navalhadas morreu satisfeito e não foi vitimado pelo excesso de bazófia que às vezes acomete os borrachões. Também seria preferível que a Serafina não tivesse apanhado uma tareia em vão, mas disto, como digo, não se pode ter a certeza, a menos que ela o confirmasse, o que é bastante improvável que aconteça, a menos que alguém faça a fineza de atropelar o Meireles com um autocarro da rodoviária. Se estivesse entrevado e a comer por um tubo, estou convencido de que o Meireles perderia uma parte da estupidez natural e da vontade de prejudicar terceiros. Acresce que deixaria de macular a Serafina com aquelas manápulas que parecem garras de jacaré, unhas e tudo, o que talvez a livrasse daquele cheiro ominoso que costuma trazer agarrado ao corpo.

Ainda o não disse, mas a Serafina cheira a morto. Disfarça-o como pode, coitada, com banhos, perfumes e água de colónia, mas sempre se lhe nota alguma coisa e desconfio que o miasma há-de ser uma coisa que se lhe colou ao corpo por força do convívio com o Meireles, que cheira à putrescina desde que nasceu, pelo menos.

O ranço da Serafina é o principal motivo pelo qual preferimos vê-la de longe ou a uma distância segura, sem que o odor nos prejudique o regalo de desfrutar da sua figura. É necessário ser um pouco anósmico – e nada me garante que o Navalhadas não o fosse, e que ela não o seja também, visto que casou com o Meireles e nunca se queixou –, ou então trabalhar como coveiro, técnico forense e cangalheiro, na recolha do lixo ou na ETAR, para que o cheio dela não cause incómodo ou repulsa.

O Papel de Seda, que se gaba de também já ter feito a folha à Serafina, explica-o garantindo, muito em segredo, que usou bolinhas de algodão canforado enfiadas nas fossas nasais. O Pichangas, que presume de tê-lo feito com todas, limita-se a garantir que por nada deste mundo abdicaria das delícias de uma mulher assim, nem que ela estivesse efectivamente morta ou fosse preciso marcar encontro numa pocilga.

Não estou nada convencido, porém, de que o Pichangas e o Papel de Seda tenham concretizado aquelas façanhas, desde logo porque nunca se põem de acordo quanto à natureza íntima da experiência. Se um afirma que a Serafina é assim e assado, logo o outro assevera que, muito pelo contrário, ela lhe pareceu frito e cozido, tão abaixo das expectativas que se tem furtado a repetir a diligência, apesar das constantes solicitações. Pleiteiam em surdina, gesticulando de forma copiosa e pondo-se encarnados, mas julgo que todas as alegações que produzem resultam mais da vaidade que lhes tolhe a lucidez, e da vontade de humilhar o Meireles, do que da veracidade do que afirmam.

Decidi há muito, por isso, que, tratando-se da Serafina, não é muito avisado confiar no que se diga. Meto-me na minha vida e alegro-me de a ver passar com a boquinha pintada, os caracóis do cabelo ao vento, o requebro das ilhargas e os bicos do peito despontando da blusa, que usa demasiado apertada. Assim comprazido, nem sinto necessidade de empulhar o Meireles.