sexta-feira, 2 de junho de 2023

O padre que fala com as vacas

É porventura inevitável que um louco reconheça os outros loucos por certos sinais particulares e que entre eles estabeleçam uma espécie de irmandade desirmanada ou uma confraria de sandeus alienados de quase tudo e ainda assim capazes de urdir uma solidariedade pura como as partículas da neblina no alto da serra ou o silêncio da noite na vila.

Acabo, aliás, de ler uma notícia extraordinária: fala de um padre da Serra de Arga, lá no alto Norte, que se filma a conversar com as vacas e as cabras que encontra no caminho, e que benze os animais, e que é tão extravagante que chega a pedir à repórter: "Quando eu morrer, façam uma notícia a dizer: 'Morreu o padre que falava com as vacas".

Jubiloso louco!

Enquanto o lia, ocorreu-me que ainda ontem tentei comunicar com um pardalito com o qual me cruzei no jardim grande da vila; e que, à noite, quando regressava a casa depois da última Barona, pedi desculpa ao gato preto que remexia nos caixotes do lixo da Rua do Mercado por tê-lo assustado com o meu silêncio ébrio. Conto ainda conversar, se não me acudir um resto de bom senso, com as ovelhas que encontro a pastar por trás dos muros quando vou correr em volta da vila. E talvez me veja obrigado a insultar um cão ou outro, desses que me vêm ladrar aos portões quando passo.

Também falei entretanto com alguns animais humanos, é certo, mas estes não contam para esta conta, pois não têm sequer o bom gosto de me ignorar quando converso com eles. Quer dizer: ignorar até ignoram, talvez não façam outra coisa, mas não deixam, ainda assim, de responder ao que lhes digo. Talvez, quando eu morrer, se recordem do estranho lunático do norte que aqui vinha às vezes para ver voar as andorinhas.