Entre os livros que procuram explorar o filão da guerra da Ucrânia, expedidos para as livrarias a um ritmo quase diário, nem todos merecerão que se perca tempo com eles. Não é o caso de Bábi Iar, de Anatóli Kuznetsov, originalmente publicado em 1966, numa versão censurada pelas autoridades soviéticas. A tradução portuguesa do texto integral — lançado em 1969, após a fuga do autor para Inglaterra — saiu no ano passado pela Livros do Brasil e a leitura tem-me sido muito instrutiva.
Memória de um rapazinho de 14 anos que viu a brutalidade soviética substituída pela brutalidade nazi durante a II Guerra Mundial, Bábi Iar testemunha a estupidez da guerra e a hipocrisia dos regimes políticos, as pequenas e grandes maldades humanas, as grandes mentiras e as grandes tragédias de um povo que, outra vez, se acha no cento da História e das suas inumeráveis convulsões. Fá-lo com algum humor — o capítulo dedicado à descrição do saque que se seguiu à entrada dos alemães em Kiev chama-se, por exemplo, O saque pode ser entusiasmante, mas tem de se saber fazê-lo — e alguma candura, também crueldade, sendo tão equidistante quanto me parece possível.
Mais do que uma "lição sobre o poder da censura", conforme vem descrito na contracapa, constitui um manifesto pela paz e contra todas as manipulações. Há, diz o texto, "tanto humanismo no mundo quanto assassinos. Todos os assassinos têm o seu próprio e mui nobre humanismo (...) e o objetivo primeiro de cada um deles é matar tantas pessoas quanto possível".
Bábi Iar, refira-se, é o nome de uma ravina às portas de Kiev, na qual os nazis metralharam e queimaram os cadáveres de mais de cem mil pessoas, entre judeus, ciganos, doentes mentais e bolcheviques. Depois os soviéticos fizeram o que puderam para que a matança fosse esquecida e obliterada.