quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023
A breve recordação de um sonho
Um homem sonha com uma casa. É uma casa ampla, simples e envelhecida, com móveis antigos e várias divisões organizadas em torno de uma grande cozinha. Não se assemelha a nenhuma das casas que o homem conheça, onde já tenha estado, mas parece-lhe familiar. No sonho, o homem tem não só a sensação de conhecer a casa e a sua localização exacta, num lugar que conhece bem, como também julga ser o seu proprietário de papel passado e contas saldadas. Mas a casa não existe. Talvez o reconhecimento resulte de um truque do subconsciente ou de uma recorrência do próprio sonho. Talvez o homem já tenha sonhado outras vezes com esta mesma casa, que é apenas, percebe depois, parte de uma casa, ou esta casa seja como um arquétipo ou um problema que urge resolver. Na casa do sonho não se vê qualquer cama, nenhum quarto, mas o homem constata que a casa dispõe de sete sofás estafados distribuídos pelas várias assoalhadas, que são apenas três ou quatro, e que há um supermercado a poucos metros de distância, o que lhe parece bastante conveniente, embora, para ali viver, o homem fosse obrigado a transportar para a casa do sonho tudo aquilo que lhe falta: alguma cama, um frigorífico, a mesa para as refeições e talvez algo mais. Ser-lhe-ia fácil ir ao supermercado, mas teria muitíssimo trabalho a tornar a casa habitável — para que, como num poema do Manuel António Pina, pudesse entrar pela primeira vez na sua casa e deitar-se pela primeira vez na sua cama. E também eu "faço coisas que não devo" e imagino-me proprietário de problemas que não existem e que se resumem a ser "a breve recordação de um sonho" ou a puríssima forma de uma casa ou de uma vida que tarda a concretizar-se. Acordo, pois, como em outro poema do Pina, expulso pelos sentidos do meu sonho, do qual "agora só me lembro pelo lado de fora".