terça-feira, 5 de outubro de 2021

O leitor passeando pela brisa do tempo









Quando li pela primeira vez Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, a internet ainda não existia para o uso comum que hoje lhe damos. Não sendo, por outro lado, versado na ocupação romana da Hispânia e da Lusitânia, li o livro sem cuidar de saber a que ponto aproximado do mundo corresponderia a ficção que Mário de Carvalho ali propunha. Estando, então, de férias no Alentejo, identifiquei o enredo com a paisagem que tinha ao redor — e não pensei mais no assunto. Agora, um quarto de século depois, regresso ao romance e parece-me tão fresco como então, e igualmente vívido, mas posso, com dois ou três cliques, saber que Vipasca corresponde à Aljustrel romana, que Gades é o nome antigo de Cádis, que Ossonobra corresponde ao lugar onde agora existe a cidade de Faro, que Septem talvez ficasse próximo de Campo Maior e que Emerita era a designação latina de Mérida. Já o município de Fortunata Ara Iulia Tarcisis, centro do enredo, nunca existiu, conforme adverte o autor logo no início, embora, por motivos totalmente fúteis, me agrade imaginar que Tarcisis se assemelhava a Ammaia, por cujas melancólicas ruínas às vezes vou caminhar, pisando as mesmas pedras calcorreadas por outros homens noutro tempo, e em cujos interstícios as cobras vão agora trocar de pele. Leitor diletante antes de tudo o mais, regresso a Tarcisis pela brisa do tempo, devagar, redescobrindo cada página do romance e a vitalidade intacta da ficção de Mário de Carvalho, aparentemente tão alheia à erosão do tempo como as pedras que os escravos de Roma afeitavam para delas construírem os templos, as casas, os coliseus e as estatuetas dos deuses.