Esta manhã, no metro, uma passageira lia um livro em pé. Chamou-me a atenção, primeiro, a extravagância do acto, quase um gesto de resistência num espaço e num lapso de tempo que quase toda a gente preenche manuseando os telemóveis para ver as inúteis actualizações das suas redes sociais. Depois consegui ver a capa do livro, que a passageira lia dobrando a lombada, concentrada e resistindo à tentação quotidiana da ímpar paisagem panorâmica que a carruagem oferece aos que deste modo atravessam o Douro pela ponte de ferro. Tratava-se de Tonto, morto, bastardo e invisible, do excelente Juan José Millás, numa edição que não conhecia. Chamou-me a atenção a simplicidade do grafismo da capa, que se assemelha a alguns exercícios de design em que, às vezes, desperdiço o meu tempo, mas também o facto de a passageira ter escolhido ler precisamente este livro e não um desses volumes com cores berrantes e dourados, historietas banais que se assemelham a telenovelas ou folhetins, e que as editoras publicam e vendem como iogurtes cujo prazo de validade expire precocemente. Caramba, pensei. Ainda há quem leia livros que não tenham sido escritos de propósito para maravilhar rapariguinhas tontas de idade variável, de acordo com todas as regras ensinadas nas oficinas de mindfulness e de escrita criativa. Caramba, ainda há gente normal no mundo. Caramba.