Um energúmeno que inexplicavelmente ainda é juiz — depois de ter pública e reiteradamente contrariado a lei que deve fazer respeitar —, apareceu esta semana na televisão a gritar e a espetar o dedo na cara de pacientíssimos agentes da autoridade. Não satisfeito, disse-lhes que, e passo a citar, "o meu lugar é este, acima de si". E foi juntar-se a uma (felizmente) pequena multidão de lunáticos que, aparentemente, não se importam de estar abaixo de sua excelência e de serem a claque do celerado e ufano magistrado, tão soberbo como um daqueles loucos que garantem ser o próprio Napoleão Bonaparte.
Creio que o homem que esta manhã morreu, e que foi presidente da república do país do importantíssimo juiz ("o mais alto magistrado na nação", portanto), nunca terá dito que era melhor, mais alto, mais bonito ou mais importante do que qualquer outro cidadão. Cruzámo-nos de raspão por duas ou três vezes e sempre confirmei em Jorge Sampaio a generosidade, a bondade, as convicções justas e a humanidade que transpareciam da sua persona pública. Nunca me arrependi, por isso, de lhe ter confiado o meu voto por duas vezes, coisa que não posso dizer de uma parte significativa das minhas idas às urnas.
Uma vez, em 1996, coincidimos no Castelo de São Jorge, em Lisboa, na entrega dos Prémios Gazeta de Jornalismo. Jorge Sampaio entregou-me a menção honrosa que nesse ano me coube e posámos para a fotografia da praxe, sob um relampejar de flashes. Queixei-me da violência das luzes dos repórteres e ele, o meu presidente, disse-me que o não fizesse. "Não se preocupe", disse-lhe eu. "Não pretendo ser presidente da república". "Eu, com a sua idade, também não queria", respondeu ele com um sorriso.
Com a idade que tenho agora, Jorge Sampaio já era presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Seis anos depois, anunciou que seria candidato à presidência da república. Creio, por isso, que o aviso de então me há-de ter servido de emenda, pois continuo tão pouco inclinado para o exercício de cargos públicos como era aos 24 anos. Desejo apenas permanecer o mais longe possível de gente extasiada pelo poder, como certos juízes, certos polícias e certos políticos com mau carácter. E também paz e sossego, um trabalho que me permita pagar as contas, o reconhecimento do trabalho que tenho feito e o mínimo de respeito devido a qualquer ser humano. Às vezes, porém, parece-me isto mais difícil e improvável do que ser , vá lá, um Alexandre da Macedónia.
Apenas me apazigua o facto de a História, quando chega a recordar os energúmenos, o faz apenas para que saibamos de que modo puderam ser boçais e inumanos, soberbos e vazios.