segunda-feira, 23 de agosto de 2021

O Afeganistão escrito debaixo das burcas









Uma burca, li há dias, é como uma gaiola. É provável, por isso, que o recente regresso dos talibãs ao poder condene as mulheres do Afeganistão a regressar à prisão da roupa que o islamismo radical impõe — ainda que o confinamento mental nunca tenha chegado a desaparecer. Veja-se, por exemplo, o caso da poetisa Nadia Anjuman, assassinada em novembro de 2005, aos 25 anos, já durante a ocupação da coligação ocidental que durante duas décadas afastou do poder os novos senhores de Cabul. 

A breve vida de Nadia talvez possa ajudar a ilustrar (e a perceber) as lógicas internas de um país onde os mais bárbaros atavismos religiosos nunca deixaram de estar presentes. Nascida em 1980, em Herat, Nadia Anjuman conheceu aos 15 anos as severas restrições impostas pelos talibãs às mulheres e raparigas. Com as escolas femininas fechadas e a instrução proibida, a adolescente inscreveu-se, com outras mulheres, numa escola de costura onde, três vezes por semana, assistia clandestinamente a encontros, palestras e debates com professoras de Literatura da Universidade de Herat. Correndo o risco de prisão, tortura e até enforcamento, as mulheres deixavam as crianças à porta, para que estas as avisassem de alguma visita inesperada da polícia religiosa dos talibãs e pudessem esconder os livros a tempo de fingirem estar apenas a costurar. 

Só aos 21 anos, com a invasão dos EUA e dos seus aliados, após o ataque terrorista às Torres Gémeas de Nova Iorque, Nadia pôde estudar Literatura. Em 2005 publicou o primeiro livro de poemas, Gule Dudi, publicado no Afeganistão, no Paquistão e no Irão, mas morreria nesse mesmo ano, espancada até à morte pelo marido, um bibliotecário de Herat. A tradução inglesa de alguns dos seus poemas podem ser lidos em sites como o Asymptote, o Brooklyn Rail, o Circumference ou o Exchanges Literary Journal

Mais sorte teve Malalai Joya. Nascida em 1978 e refugiada da guerra afegã-soviética, regressou ao Afeganistão para ser deputada entre 2005 e 2007. Mas foi expulsa por denunciar a presença no parlamento de antigos criminosos de guerra. Considerada por muitos “a mulher mais corajosa do Afeganistão”, causou polémica ao considerar que as mulheres e os direitos civis do país sempre tiveram três inimigos: os talibãs, os senhores da guerra e os ocupantes estrangeiros. A sua autobiografia, Uma Joia Afegã, teve edição portuguesa, pela Quidnovi, tendo ainda dado origem a um romance, La leggenda del Burqa, do italiano Thomas Pistoia, e a cinco filmes. 

Também refugiada, desde 1991, mas em França, Spôjmaï Zaryab, foi a primeira escritora contemporânea afegã a ser traduzida do Persa para o Francês. Começou a publicar aos 17 anos e, entre 2000 e 2010, foram publicados em França os livros de contos Ces Murs Qui Nous Écoutent, La plaine de Caïn, Dessine-moi un coq e Les demeures sans nom, quase sempre inspirados na tradição cultural afegã. Considerada entre os três maiores escritores afegãos contemporâneos (juntamente com os poetas Khalîlî e Madjroûh, ambos já desaparecidos), contou, numa entrevista de 2001 ao Le Courier da Unesco, que deve ao seu pai o amor pela literatura. “Ele nunca me fez sentir diferente por ser rapariga, nunca me proibiu nada” — algo que, sob o regime talibã, voltou a ser praticamente impossível. “Nunca mais verei a minha pátria, a minha cidade, a minha casa”, conclui Spôjmaï.