Como quase tudo o que é humano, imperfeito e transitório, as frases “Escrevo o que quero escrever, nunca escrevo o que quero”, que são o mote deste encontro, só aparentemente constituem uma contradição. A incoerência, se for disso que se trata, reside na própria vida e nas suas múltiplas e diversas manifestações, na maravilha que é não ter certezas e, mesmo assim, continuar a fazer isto ou aquilo cumprindo o subjectivo desígnio que é viver. Quer se empregue o tempo a escrever, a desenhar, a amar ou a colar cartazes, existir é, em si, um paradoxo essencial e muito humanamente alheio às certezas aritméticas daqueles que, nunca tendo dúvidas, também se enganam (e nem sempre tão raramente como julgam). Viver é essencialmente a arte de falhar, aprender com o erro e seguir adiante. Com a literatura não sucede de forma diferente.
Escrever livros,
ou proferir conferências em festivais literários como este, é quase sempre o
caminho mais curto e recto para o ridículo ou para que alguém se veja recoberto
com uma camada de alcatrão com penas com a qual se castigavam os farsantes e os
larápios nas histórias de Lucky Luke, o cowboy mais rápido do que a própria
sombra.
Ainda que
metafóricos, o alcatrão e as penas do faroeste (e do ridículo) constituem o
principal medo atávico de uma boa parte os escritores, quer dos escritores que
escrevem quer daqueles que adquirem o complexo de Bartleby e preferem não o
fazer. É-o também para os escritores postos a falar diante de uma audiência
como esta. Escrever ou falar para que outros o leiam, escutem e avaliem é quase
sempre um número tão arriscado quanto um qualquer funambulismo de circo. Não se
quebra a espinha na queda, mas é o próprio ego que padece e geme, contundido
pelo vexame do severo juiz que trazem dentro as pessoas não demasiado cheias de
si próprias (ou que não se alimentem da empáfia que produzem).
Dito isto, peço
que notem que ninguém me obrigou a estar neste palco, atrás desta mesa, e que,
tal como sucede quando escrevo, aqui estou apenas a produzir as frases que
quero e as suaves irrelevâncias em que milhões de neurónios chafurdaram enquanto
tentava escrever isto que agora leio.
Assim como sucede
enquanto faço aquilo a que se convencionou chamar literatura, limito-me aqui,
esta tarde, a tentar empurrar ladeira acima a proverbial pedra de mármore desta
alocução, a qual rolará montanha abaixo antes de ter conseguido levá-la até ao
cume. No próximo ano, ou noutro qualquer festival de escritores, é quase certo
que, qual Sísifo, voltarei a cumprir o bem pouco divino castigo de tentar
espantar ou, ao menos, satisfazer a curiosidade de quem me escute, correndo
outra vez o risco de fracassar. E, outra vez, a pedra rolará montanha abaixo, e
eu com ela, quebrando nisto todos os ossos do meu anémico ego.
Sou, esta é a verdade,
um indivíduo que padece de horror ao vexame e à vergonha da queda pública, e
que, ao mesmo tempo, sofre de uma indómita e irrefreável atracção pelo abismo. Vivo
entre a hesitação, a insegurança e o escrúpulo excessivo, por um lado, e um
exibicionismo quase inconsciente, por outro. E por isso aqui estou expondo-me outra
vez ao piche e às penas da vossa indiferença ou do vosso desdém, incorrendo exactamente
no mesmo lapso de carácter que me leva a escrever um e outro livros com a
certeza prévia e clara que nunca serei capaz de “escrever o que quero” — se
calhar por não estar bem certo do que quero, se calhar por ser incapaz de
perceber distintamente a formidável distância que vai do meu projecto à minha
capacidade para o executar.
Talvez mais
importante e essencial do que determinar se apenas escrevo o que realmente
quero — e juro sobre o gargalo da minha melhor garrafa de vinho que o faço
mesmo quando me limito a dar resposta a uma encomenda —, será questionar-me
sobre os motivos pelos quais escrevo. Só a partir daqui, creio, será possível
avaliar o resultado deste labor.
Ora, tanto quanto
é possível auto-analisar-me, são vários os motivos que me levaram, há mais de
20 anos, a iniciar-me nesta venturosa perda de tempo que é a literatura. Fi-lo,
desde logo, por não saber fazer mais nada, mas também, não nego, para obter
reconhecimento, para que as outras pessoas gostem de mim e do que escrevo, e
porque me agrada a possibilidade algo demiúrgica de reconstruir o mundo e
recontá-lo à medida dos meus medos e dos sonhos, das minhas angústias,
desilusões, entusiasmos e fantasmas.
Poderia, neste
ponto, e sem faltar à verdade, invocar a já quase clássica definição de Gabriel
García Márquez nos “Cem Anos de Solidão” e dizer que escrevo livros desde que
percebi que a literatura é “o melhor brinquedo (...) para gozar com as outras
pessoas”, acrescentando, porém, que a literatura também é a forma mais saudável
de troçar de mim e de me pôr em causa.
Ainda melhor: como
sugeria o Manuel António Pina numa crónica com muitos anos, a literatura é a
melhor forma de fugir para o país de exílio que é a infância, onde me posso esconder
e refugiar sempre que os ladrões da realidade venham para me roubar a inocência
e os sonhos.
Escreveu o Pina
que, embora as estatísticas não o refiram, há na nossa sociedade - liberal, fiscalista,
economicista e austera - “uma enorme e perigosa carência de infância, de sonhos
e de coisas verdadeiramente grandes”. Ora, escrever livros é, de certa forma,
ser capaz de transcender e superar esta realidade. Enquanto escrevo, sou tão
livre e louco como o filósofo Diógenes, que vivia dentro de um barril e
carregava uma lamparina durante o dia a ver se encontrava um homem honesto que
fosse — ou uma qualquer verdade essencial, íntegra e alheia à insensatez do
quotidiano.
Escrevo, pois,
carregando a minha tíbia lamparina de sonhador ou louco ao sol do meio dia. Faço-o
como quem pratica um jogo infantil e lúdico, no qual o prazer e o desafio da
busca são o único critério realmente válido. De todas as vezes julgo que erro e
que fracasso; que não “escrevo o que quero”. Mas, se penso nisso mais
detidamente, ocorre-me que esta permanente insatisfação, esta sensação de
incompetência, não é outra coisa que uma forma de me enganar-me e de me
fornecer o pretexto necessário para voltar a tentar uma e outra vez — como a
criança que fui e construía castelos de areia demasiado próximos da espuma das
ondas.
*Texto lido na edição de 2016 do festival literário Correntes d'Escritas