terça-feira, 16 de setembro de 2014

Palmirinha, a carquejeira






















As notícias são todas umas iguais às outras. E depois há pequenos lampejos de ternura como aquele que ocupa o canto inferior de uma página do Jornal de Notícias de hoje. A fotonotícia dá conta da morte de Palmirinha, 102 anos, a última das carquejeiras que outrora subiam a rampa íngreme que vai do Douro às Fontainhas acartando sólidos carregos de carqueja à cabeça.

Na fotografia, Palmirinha ainda está viva. Vêmo-la sólida, com o cabelo branco preso na nuca e contemplando o rio no ponto em que, noutros tempos, os barcos descarregavam a carqueja antes de a electricidade e o gás terem ditado a sentença de morte ao oloroso e simples recurso aos fogareiros. Pela cabeça de Palmirinha, aquela cabeça que se vê na fotografia, terão passado toneladas de carqueja, acarretadas encosta acima, a qual, depois, dava vida ao lume onde os portuenses cozinhavam e se aqueciam.

A profissão de Palmirinha morreu muito antes dela. Terminou mesmo muito antes de o carvoeiro da minha rua ter fechado pela última vez as portas do tugúrio enegrecido onde se ia cada vez menos para comprar carvão e carqueja (talvez daquela que a Palmirinha trazia à cabeça) Recordo-o, ao velho carvoeiro da minha rua, com um misto de saudade e de angústia - não sei se por ainda ter idade para saber o que é um carvoeiro ou por ver no exemplo desse ofício o fim de muitos outros, entre os quais, vai sendo certo, também daquele que escolhi para mim.

Surpreende-me um pouco, aliás, dar ainda com a notícia da morte da Palmirinha num jornal de 2014, sobretudo não se tendo tratado de nenhum crime hediondo ou de alguma das ocorrências políticas e policiais de que os jornais estão cheios. São apenas quatro linhas num canto de página: "Morreu ontem no Porto, com 102 anos, Palmira de Sousa, a última resistente de uma das mais duras profissões do mundo: carregadora de carqueja. O seu funeral terá lugar amanhã". Li-o e enterneci-me. Li e viajei para um lugar insólito da infância onde a carqueja era uma coisa material e sólida e não apenas, como agora, uma palavra da qual talvez nem se saiba o que significa. Li a notícia e dei por bem empregue, hoje, o gesto de abrir um jornal.