domingo, 4 de novembro de 2012
Lá vai o catraieiro, trotroctroc
Crónica urbana da revista 2 do Público, publicada no dia 28 de Outubro
Faz falta, em alguns momentos, que Fernando Pessoa (ou algum dos seus heterónimos) tivesse vindo ao Porto – para ficarmos a saber, por exemplo, se os paradoxos metafísicos resistiriam a um migalho de tempo passado num sítio onde o Douro é mesmo o mais belo rio que corre na nossa aldeia e ponto final. Em volta do gradeamento pintado de branco do Cais do Ouro, tão perto e tão longe da cidade, o Porto, este pedaço do Porto, podia ser, e se calhar é, uma aldeia de pescadores silenciosos e tristes; uma aldeia de que a cidade se esqueceu, da qual se retirou como um exército de ocupação, deixando para trás ruínas e coisas que já se não usam: uma fonte de pedra, o terreno murado e estéril da antiga fábrica do gás, um palacete entaipado, um urinol de ferro forjado, armazéns vazios e homens velhos jogando às cartas na esplanada de um quiosque.
Quando o Flor do Gás abandona o cais e o seu ruído cessa, a cidade quase não se nota. Vê-se o trânsito circulando ao longe, na Ponte da Arrábida, uma colina terraplanada na margem esquerda, onde ainda há-de nascer um condomínio de luxo, e os mastros dos iates na marina da Afurada. Mas o resto da paisagem é a foz do Douro, uma água parada e grossa que vem morrer em lentas marolas contra as pedras do cais, e um resto do sol de Outono rompendo entre as nuvens da tarde. Do lado de lá, o casario da Afurada dá ares de aldeia trepando pelo monte, as traineiras no rio denunciado a sua vocação piscatória. Do lado de cá, há pobres barquitos sem mastro nenhum e as pombas cobrem o telhado da barraquinha de madeira onde se guardam apetrechos e grades de cerveja. Há um pato bravo nadando na água suja, uma gaivota estacionada no ancoradouro. Casimiro Manuel, o pescador “artezanal”, remenda a rede para que o peixe que ainda é pão não fuja pelos buracos. A tripulação da catraia Cardinal’s sacode as algas, muitas, que ficaram presas na rede e que milagre nenhum transformou em fanecas. A cidade deles é uma aldeia de facto; e o Douro é o rio mais belo que nela corre.
A lancha Flor do Gás, transitando quase vazia entre as duas margens, não é, pois, um transporte público entre duas cidades, Porto e Gaia, que o rio separou; é um resquício de um passado vagamente urbano, quando havia mercadorias sendo carregadas e descarregadas para carros de bois de amplas cornaduras. Ser catraieiro (do dicionário: dono ou tripulante de catraia, embarcação pequena utilizada para diversos fins) devia ser, então, uma profissão tão comum como outra qualquer, já que o bulício portuário requeria que se fosse e viesse muitas vezes à outra margem. A palavra catraieiro soa agora, porém, exótica e rara. Tanto que, no cartaz desbotado que há na entrada da rampa do cais – anunciando “a unique chance to cross the river for a delightful walk” –, a Sociedade dos Catraieiros do Douro está identificada como “Sociedade dos Catroeiros”.
A viagem entre a aldeia mental de pescadores do lado de cá e a concreta vila de pescadores da Afurada, na outra margem, custa um euro e demora menos de cinco minutos. Ora leva dois turistas, ora um ou outro ciclista a cortar caminho no passeio pelas marginais. Nas horas de ponta ainda serve vagamente de transporte público a quem mora numa margem e trabalha na outra (e não pode suportar os custos de passar de automóvel pela Arrábida). A bandeira nacional adeja ao vento, hasteada na cobertura que protege os passageiros da intempérie, e o motor tossica um trotroctroc de coisa velha a diesel. Transita entre os dois rostos de uma cidade e os dois lados de um rio: o mais belo da nossa aldeia.