domingo, 21 de outubro de 2012
Os mandarins querem-se mais clarinhos
Crónica urbana da revista 2 do Público, publicada no dia 14 de Outubro
Não é preciso ser um especialista de aves para saber que umas piam e cantam, algumas chilreiam e outras trinam e gorjeiam. Em casos especiais, cacarejam ou grasnam. Na Feira dos Pássaros que todos os domingos, pela manhã, se arma diante da antiga Cadeia da Relação do Porto, os sons dos pássaros estão, porém, todos misturados numa peculiar babel de gaiolas e sacos de sementes, abrigada sob a cobertura dos grandes guarda-sóis claros que a câmara municipal instala. Não sei se, conforme acreditavam os antigos, há alguma coisa de sagrado na linguagem dos pássaros. Não a entendo. Mas, olhando para as cores das penas que têm, não duvido que possam ter sido criados por um colorista muito extravagante e louco.
Assim que a manhã nasce e os últimos boémios abandonam os bares da moda que cercam os Clérigos, começam a chegar, em furgões e pequenas camionetas, os comerciantes de aves ornamentais e rações. Instalam mesas e gaiolas entre chilreios e roçagares de asas, e, daí a nada, a rua está outra vez cheia de carros estacionados em contravenção. Há muita gente circulando, a maior parte comprando alpista e sementes, grãos de vários tipos, “comida para canário”, “papa amarela para todo o tipo de pássaros” e até suplementos alimentares com nomes tão chamativos como Natural Vitaminator, que talvez seja uma espécie de doping para os alados seres.
Duvido, ainda assim, que os minúsculos bengalins possam transformar-se em temíveis aves de rapina se forem objecto de um regime alimentar adequado, mas sei que os pacatos vendedores se tornam vigilantes e desconfiados quando me aproximo das gaiolas com o bloco de notas na mão, e que me olham com algum rancor enquanto escrevo os nomes das aves e as cores que têm. “O amigo precisa de alguma coisa?”, interpela-me um. Pergunto pelo nome de uma ave tropical verde escura e cinzenta, com uma poupa na cabeça e olheiras e bico de um laranja muito vivo. “Esses são agapornis”, responde. Nunca tinha ouvido falar e, por isso, descubro, com a ajuda do Google, que também se chamam agapones e que são conhecidos como “o pássaro do amor”. Um pouco de ternura para o domingo de manhã, portanto.
Continuo circulando entre rolas, canários de sei lá quantas cores (vermelho, amarelo, marfim, rosa...), periquitos, caturras, papagaios, patos, galinhas, gansos e até coelhos, ratos, cágados, lagartos, chinchilas e furões; leio os cartazes que anunciam os “grandes reprodutores”, o “rei dos cantores”, os “casais prontos a criar”, mas os olhos prendem-se-me ao inacreditável garrido dos diamantes gold: pequenos pássaros que combinam, num só corpo, o lilás, o amarelo, o azul, o verde e o vermelho. Aprendo que avezitas do tamanho de um polegar podem custar entre dois e 150 euros, e que as de maior porte e procedência tropical chegam a orçar os 850 euros, ou se calhar mais. Numa das bancas, uma mulher aproxima-se e diz que quer mandarins. O vendedor enfia a mão da gaiola, agarra num ao calhas, mas a mulher sabe muito bem ao que vai: “Dê-me um mais clarinho”, exige. Assim mesmo, como se fosse um pão menos cozido, ou um bolo para levar ou comer já. Não por acaso, o mandarim clarinho é metido num saco de papel (com furos).
A manhã avança e as aves persistem em gorjear, talvez assustadas pela multidão que passa e passa e passa, e aproxima os narizes das gaiolas para ver melhor as cores da passarada. Não sei o que dizem, nem posso imaginar o que pensam, se se sentem confinadas e privadas de liberdade, ou se lhes parece a elas que somos nós quem está preso atrás de grades, como estavam os que, noutros tempos, ficavam detidos no imponente edifício que agora acolhe o Centro Português de Fotografia. Mas, se calhar, é tudo uma questão de escala e percepção e somos todos, afinal, homens e pássaros, cativos de uma jaula maior que não se vê.