domingo, 16 de setembro de 2012
Um certo Gonsalves
Texto da coluna Piolho dos Livros da revista 2 do Público, publicada no dia 9 de Setembro
De entre os contos que o argentino Julio Cortázar escreveu, há um que me ficou especialmente gravado na memória. Chama-se El Perseguidor e conta a história de um músico de jazz, Johnny Carter, que é capaz de subverter o tempo: consegue pensar quinze minutos em minuto e meio. Por isso, toca o seu instrumento como se cada segundo fosse elástico e nele coubessem vários segundos. O extraordinário conto foi publicado em 1959 e é habitualmente descrito como uma homenagem a Charlie Parker, o Bird, cuja biografia foi, de resto, objecto de uma adaptação cinematográfica de Clint Eastwood. Todavia, sempre que penso em El Perseguidor, vem-me à memória um outro filme, Round Minight/À Volta da Meia-Noite, de Bertrand Tavernier, cujo personagem principal, Dale Turner (interpretado por Dexter Gordon), se assemelha bastante a Johnny Carter, talvez porque a acção decorra também em Paris e haja um admirador parisiense que conversa com o músico tentando salvá-lo da destruição pelo álcool e pela droga, à qual o saxofonista se entrega com a vontade indómita dos desistentes e cansados da vida.
El Perseguidor vem-me muitas vezes à ideia também por causa de um outro livro, Os Trinta Dias do Homem Mais Pobre do Mundo, de Mário Lúcio Sousa. Foi aí que descobri, acompanhando o tráfico amoroso de Maria Cuenca Cuenca nos escondidos do Tarrafal, a existência de Paul Gonsalves, cabo-verdiano e saxofonista tenor da banda de Duke Ellington. Pouco conhecedor das coisas do jazz, tive de ir investigar se Gonsalves era apenas ficção ou se existia de facto. Não foi difícil. A internet está cheia de informações, fotografias e até vídeos do saxofonista, executando, por exemplo, um solo brutal em Diminuendo and Crescendo in Blue, com a orquestra de Ellington, o qual, no fim, pede várias vezes o aplauso para o extraordinário cabo-verdiano.
Gonsalves, que também tocou nas bandas de Count Basie e Dyzzy Gillespie, morreu a 15 de Maio de 1974, em Londres, apenas alguns dias antes de que também Duke Ellington se finasse, a 24. É uma coincidência espantosa, apesar de o cabo-verdiano ter sido afastado da banda de Duke alguns anos antes, alegadamente “devido ao seu incorrigível apego à aguardente”, conforme está escrito no pequeno romance de Mário Lúcio. De acordo com a biografia que há na Wikipedia, Paul Gonsalves ganhou de Ellington a alcunha de The Strolling Violins (algo como “os violinos errantes”), por ter o hábito e o virtuosismo de tocar longos e complexos solos enquanto caminhava entre o público.
Os pais de Paul, parece, pediam-lhe, às vezes, quando era menino, que tocasse velhas canções do folclore português. Não sei porquê, gosto de imaginar que, em alguma noite de copos num bar de jazz, o cabo-verdiano terá tocado para Duke uma dessas modinhas; e que o pianista o acompanhou sorrindo. Entre El Perseguidor e Os Trinta Dias do Homem Mais Pobre do Mundo, é como se um outro conto se estivesse já escrevendo.