domingo, 9 de setembro de 2012
Enquanto a batota não começa
Crónica urbana da revista 2 do Público, publicada no dia 2 de Setembro
Enquanto não chegam os velhos que, daqui a pouco, hão-de vir sentar-se à volta destas mesinhas de pedra para jogarem às cartas, repare-se que o Passeio das Virtudes existe desde que, no século XVIII, se construiu o grande paredão onde assenta este jardim estreito com vistas para o casario de Miragaia, os telhados dos armazéns, o Monte dos Judeus, uma nesga de Douro e, do lado de lá do rio, as caves do vinho do Porto, as casitas encavalitadas de Gaia, os condomínios de luxo, o shopping da Afurada e a Ponte da Arrábida. Pode-se espraiar o olhar pela lonjura ou, então, baixá-lo até os socalcos de um dos mais notáveis parques que a cidade tem, quase escondido, ali encaixado na espécie de vale seco que vem do Carregal e desagua no edifício da Alfândega.
O primeiro velhote chega entretanto, olha à volta desconfiado e vai retirar do sítio secreto (fica só entre nós) uma prancha branca que, assente no tampo da mesa de pedra, serve de base à jogatina das cartas. Leva o apetrecho e vai guardar lugar, não suceda que os jovens rufias se antecipem e fiquem ali a estorvar a tarde de batota (em vez de irem sentar-se nos muros a deitar abaixo as bejecas que vão buscar ao Bufete El-Reys). Por trás do velhote, sob a sombra fresca das árvores altas, estão os quatro pequenos cavaleiros medievais de bronze, imóveis mas tensos como guerreiros de verdade. Aproximam-se turistas que fotografam as poses do costume com o rio ao fundo. Um casal de namorados detém-se e trafica beijos breves, carícias.
Aos poucos, assim que a hora do almoço se extingue, os outros velhotes começam a chegar. Alguns sentam-se logo, já desinteressados do quotidiano espanto da paisagem. Outros vão ainda contemplar o amplo pedaço de mundo que dali se avista. Grasnam gaivotas. O vento agita a folhagem, ergue a poeira do chão, e nem se estranharia se, pela brisa da tarde, ali passasse um deus grego, cabisbaixo, enumerando as várias virtudes que parecem arredadas da engrenagem do mundo: a sabedoria, a temperança, a coragem e a justiça (ausente tantas vezes, esta, mesmo do palácio que se lhe ergueu ali ao lado).
Enquanto, porém, a batota não começa, nem se jogam ases e manilhas, damas e duques, os velhotes conversam em voz alta e alterada, e são mais prosaicos os assuntos de que se ocupam, nomeadamente as fortunas que se gastam em jogadores de futebol e outras amenidades. Recorrem, para ganharem espaço na conversa, a expressões como “bamos lá’ber”, “ouça lá”, “bocê descumbersa” e “num lêem as coisas como deve ser”, ficando logo muitíssimo claro que “é o pé-rapado que faz esta merda toda”. Por exemplo: não é de hoje nem de ontem, mas de tempos muito mais recuados, de “antigamente”, que certos homens “até empenhavam os fatos para ir ao futebol” ao domingo.
A dado passo, sem ser por nada, a conversa parece esmorecer e concentrar-se nos achaques naturais da idade. Ainda não há cartas sobre a mesa, nem manilhas nem ases, e um dos velhotes diz que, por causa “dos diabetes”, o médico lhe diz para comer muitas vezes ao dia. Mas logo, respondendo a não sei que provocação sibilina, ouço-o dizer que “já se sabe que um jogador de futebol, um dirigente ou um político come trinta vezes melhor do que eu”. E provavelmente mais vezes. A brisa da tarde ainda sopra, mas o deus passeando não vem. Nem a virtude da justiça. São quase três horas e ainda falta alguém para que se possa começar a jogar às cartas.