Crónica urbana da revista 2 do Público, publicada no dia 8 de Julho
- Vai alguma coisinha, meu amor?
A proposta é repetida a cada passo e, no Mercado do Bolhão, a escolha é vasta: cintos, guarda-chuvas, baldes de plástico, vassouras, brinquedos, batatas (“quer batata vermelha ou batata branca?”), cebolas, tomates, abóboras, pimentos, alhos, chilas, maçãs, laranjas, peras, ameixas, pêssegos, cerejas, “manjaricos”, bananas, laranjas, tangerinas, mangas, kiwis, brincos-de-princesa, rosas de várias cores, peixe fresco (em caixas de esferovite), galos vivos com grandes cristas encarnadas, regueifa, broa, carcaças, pombos, rolas, bibelôs diversos, souvenirs, ervas dietéticas, panos de cozinha, feijão seco, ovos, limões, couves variadas, nabos, nabiças, cenouras, azeitonas, tremoços, melão, meloa, “melancia boa” (“não quer?”), morangos, tripas enfarinhadas, carnes verdes, especiarias, biscoitos, damascos, magnórios, vagens, figos, cabritos pendurados pelos pés (com os olhos vidrados olhando-nos mansamente de trás da montra), enchidos, fumados, queijos, bivalves, milho, nozes...
Na montra da Cafetaria Pintainho, uma das dezenas de mensagens escritas por turistas em cantos de toalhas de papel chama, ao Bolhão, “marché insolite”. É uma boa definição para um mercado efectivamente incomum, insólito, destruído, arruinado e esvaziado por décadas de incúria. Metade dos espaços de venda está vazia, os pilares esboroam-se, as escadas estão sujas, a ala sul está suportada por andaimes e todas as coisas parecem subsistir graças a remendos: panos coloridos servem de cortinas para tapar o sol da manhã, os telhados estão cobertos por telas plásticas, há coberturas de oleado, de tudo o que sirva para ir desenrascando, mantendo a funcionar o que resta do último mercado do Porto.
Os turistas, porém, gostam de mercados e não deixam de vir espantar-se com estas vendedeiras que parecem nossas avós ou nossas tias, velhas mulheres do campo que estão no meio da cidade como se nunca tivessem saído das suas aldeias abandonadas, e que não se cansam de chamar ( “vai alguma coisa, senhor?”) os clientes que sobraram e os estrangeiros que só tiram fotografias e, às vezes, compram fruta para se refrescarem da canícula do Porto. Ficam gratos pela simpatia e pela amabilidade e escrevem elogios às sardinhas fritas e às lulas da Cafetaria Pintainho, esse “resto hors du temps”, um restaurante fora do tempo num mercado um pouco já fora do mundo. Absolutamente insólito, se se repara nos andaimes que seguram as paredes e nos municipais cartazes que tapam as montras vazias, propagandeando o site da autarquia e o concurso Porto Digital em 3D.
- Quer alguma coisinha, senhor?
Os paradoxos acumulam-se em camadas sucessivas, à imagem das coberturas improvisadas sobre as nossas cabeças. Insolitamente, a escadaria mais limpa e conservada do mercado, aquela que dá para a Rua de Fernandes Tomás, mantém dois painéis publicitários em azulejos, anunciando os (ex)tintos Menagem, “o vinho dos embaixadores”, e Sanguinal, o “vinho sem rival”. Na Cafetaria Pintainho bebe-se Paisinho (“desde 1890”), mesmo que se tenha vindo de Taipé. Uma vendeira de frutas entra em passo apressado e anuncia que “a puta da polícia apareceu” e está a bloquear os carros estacionados na Rua Formosa. Já as obras, sempre adiadas, ninguém as vê no mercado insólito.