Crónica urbana da revista 2 do Público, publicada no dia 13 de Maio
Neil Pasricha, um gajo canadiano com alguma fartura de tempo livre, transformou-se num fenómeno blogosférico quando, em 2008, iniciou a publicação de uma série de mil conselhos destinados a proporcionar prazeres diários que fossem, ao mesmo tempo, simples, gratuitos e universais. A lista, finalizada recentemente, inclui coisas mais ou menos bizarras, como olhar fixamente o fogo, ver a luz ao fundo túnel ou andar à roda com a cadeira do escritório sem nenhuma razão aparente. Não lhe ocorreu, porém, o pessoano “ter um livro para ler e não o fazer”, nem sequer, creio, a impagável possibilidade de passar um pedaço num daqueles bancos de jardim a partir dos quais se pode ficar a ver o afã da cidade transformado num filme – como na Praça de Carlos Alberto.
Gosto de me sentar aqui, mesmo se chove e os bancos estão molhados, provavelmente porque – com a excepção de um oleado amarelo na fachada da junta de freguesia – não se vê nada ao redor que destoe muito da ideia que tenho daquilo que deva ser um sítio pacato e humano: não há prédios feios, nem bombas de gasolina, nem políticos circulando, apenas uma estátua de Humberto Delgado embrulhado numa flâmula nacional em bronze e a homenagem da cidade àqueles que morreram na Grande Guerra de catorze-dezoito. O chão da praça é de pequenos cubos de calcário e basalto, há um velho quiosque, fechado mas bem conservado, pintado de vermelho e branco (útil, portanto, para a harmonia das coisas na praça), e fachadas com bonitas proporções neoclássicas e ornatos Art Noveau. Um palacete solar caiado de branco e pessoas passando de cá para lá: indivíduos reais entregues ao ritmo do quotidiano e ao instinto de sobrevivência a que os tempos obrigam.
Gosto também das lojas; das novas que vieram para aproveitar a animação recente, mas sobretudo daquelas que evocam outros tempos e outros ritmos: a Farmácia Lemos, a Loja das Malhas, a dos atoalhados (em “liquidação de stocks”), os Armazéns Morais (encerrados), a Casa dos Óculos, a retrosaria Lopo Xavier, a Novi Malhas e Miudezas, o Restaurante Romão e a pequena e delicada montra que oferece “arranjos de costura” e exibe pernas de plástico dispostas ao alto. O café Luso já não é o que era, assaltado pelos anúncios em néon e pela mobília plastificada, mas até a fachada do banco mantém um encanto Arte Nova muito pouco adequado às leis da rentabilidade e do lucro. Às vezes vêm os pombos para bicar alguma coisa do chão, casais de namorados num enleio de mãos e pessoas conversando assuntos de maior gravidade (há, defronte, um velho hospital para os ricos do costume).
Se estivesse sol, acendia agora mesmo uma cigarrilha, fechava os olhos e ficava a tomar no rosto o calor que Maio ainda não trouxe. Fazia por ignorar o grande cartaz que, na fachada do Palácio dos Viscondes de Balsemão, anuncia uma exposição de fotografia, já encerrada e dedicada ao “Quotidiano Imperfeito”. É sempre possível encontrar defeitos naquilo que se tem – da inflação aos baixos salários, do barulho que fazem os vizinhos de cima ao preço dos combustíveis. Mas também, e porque não?, se pode perfeitamente seguir outro dos conselhos gratuitos de Neil Pasricha: dar de ombros e lembrarmo-nos, enfim, da sorte que temos por estarmos aqui, e vivos, neste exacto momento de um dia apenas igual aos outros.