domingo, 6 de maio de 2012
Observação clandestina do voo dos pássaros
Crónica urbana da revista 2 do Público, publicada no dia 29 de Abril
Não esperava encontrar Tirésias, o velho adivinho grego, no Miradouro da Vitória – não sou tolo a esse ponto. Nem sequer, pelos motivos óbvios, tinha alguma expectativa de ali avistar José Saramago, ainda que me tenha lembrado dele quando vi, no portão que delimita esta varanda da cidade, o cartaz anunciando que o local, que antes era de todos, passou a ser “propriedade privada/private property”, sendo o acesso permitido apenas “para fins turísticos”. Pareceu-me que ficava ali a matar, escrita algures, aquela frase do escritor em que ele diz “privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar (...) e, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos”.
Não podendo invocar, em minha defesa, qualquer pretexto ou fim turístico, entrei clandestinamente no terraço de terra escalavrada guardado por duas palmeiras imponentes e paredes ameaçando ruir. Ignorando-se os sinais da incúria, agora privatizada, a paisagem continua esmagadora (e escandalosamente pública pelo menos enquanto a câmara municipal não lançar o respectivo concurso público para a sua concessão e exploração): a cidade estende-se num mar de telhados que o Douro prateado divide a meio, em cintilações de clarabóias vidradas, e ganha corpo, à esquerda, nos edifícios da Sé, do Paço Episcopal, da Igreja dos Grilos, e, mais abaixo, do Palácio da Bolsa. Ao fundo, robusta como os séculos, a velha ponte metálica sobre a qual o metropolitano transita lentamente. No rio, ancorados na outra margem, os rabelos estão alinhados numa elegante parada.
Distraio-me, mas não foi para ver as vistas que aqui vim. Estava apenas à procura de um sítio alto, a partir do qual pudesse enxergar o voo dos pássaros. Queria tentar imitar Tirésias – aquele que interpretava o canto das aves e era capaz de ler o futuro escrito nos arabescos que elas desenham enquanto deambulam pelo céu. Entre a folhagem das palmeiras, invisível, o passaredo mais miúdo agitava-se e gorjeava, mas não disse nada que prestasse ou que eu tivesse entendido. Sou, talvez, duro de ouvido. Não sirvo para Tirésias.
Restava-me o céu, o azul límpido do céu de Abril depois das chuvas, e as palavras que os pássaros nele estivessem escrevendo. Empoleiradas no muro, duas ou três gaivotas estavam já perscrutando o horizonte, como se também nele estivessem lendo alguma coisa. Imitei-as, pois, mas apenas vi mais gaivotas e alguns pombos, todos riscando o firmamento em voos largos e circulares, ágrafos, lisos como as linhas em branco dos cadernos novos da minha infância. Não escreviam absolutamente nada. Percebi depois que gaivotas e pombos se limitavam a vigiar os restos com que se alimentam para depois descerem ao chão em voos picados, de rapina. Observando-os nesta rotina, facilmente se percebe que as gaivotas, mais corpulentas e agressivas, roubam impunemente tudo aquilo que os pombos encontram para comer; e que estes, como portugueses mansos, se encolhem, cobardes e torpes, assim que alguma gaivota se aproxima.
Se é aquilo o devir? Se o que aí vem é um sítio privado onde apenas se entra clandestinamente? Se devemos acreditar em tudo o que os pássaros exemplificam e demonstram? Não sei. Mas, se for isto o futuro, não me parece que venha a ser grande coisa – excepto, claro, se se estiver no lugar das gaivotas.