Texto da coluna Piolho dos Livros da revista 2 do Público, publicada no dia 8 de Abril
Em volta dos livros borboleteiam, às vezes, histórias que bem poderiam caber dentro deles. São larvas de romances a ser, ou mariposas de literatura, conforme o estimado leitor prefira, que a mim não me agrada especialmente nenhuma das fórmulas (mas parece que estou hoje congestionado de metáforas lepidópteras). Se calhar até há nisto algum sentido, na medida em que se vai falar de bigodes e, bem vistas as coisas, a pilosidade facial também se pode assemelhar a uma ave ou a um insecto, ao ponto de se chamar mosca ao tufo que alguns homens usam no queixo.
Poderia invocar inúmeros e mui literários bigodes, mas a memória transporta-me, e não por acaso, para Luanda. Era Agosto de 2007 e cacimbava. O trânsito progredia com proverbial dificuldade e, numa dessas viagens, o Ondjaki há-de ter-me posto a par de um dos projectos literários em que andava a cogitar: escrever uma história que tivesse como protagonista o bigode do Manuel Rui Monteiro, longo e um pouco desgrenhado, ao qual ficariam agarradas migalhas de ficções, como as massinhas da sopa de letras, a partir das quais ele faria a sua literatura.
O livro, porém, só veio a ser publicado no final do ano passado e, por isso, já quase me tinha esquecido dele e da visão onírica que o Ondjaki tinha do bigode do Manuel Rui. O título da história, “A bicicleta que tinha bigodes”, também não foi suficiente para que imediatamente associasse uma coisa à outra. Só quando iniciei a leitura das primeiras linhas percebi que a bicicleta colorida dos sonhos do personagem do livro tem, à frente, “uns bigodes iguais aos do tio Rui”, “que é escritor e inventa estórias e poemas que até chegam a outros países muito internacionais”.
Na pressa dessa primeira leitura oblíqua, diante do expositor de uma livraria do Porto, pareceu-me inclusivamente que era o guiador da tal bicicleta que se assemelhava ao bigode (“assim tipo capim que já não se corta desde o último cacimbo”) do tio Manuel Rui. Sorri meio enternecido, pois também já fui um menino sonhador capaz de ver elefantes nas nuvens e bigodes onde apenas existem guiadores de bicicletas. E fiquei até um pouco contrariado quando constatei que não era disso que se tratava. A bicicleta, afinal, tinha os tais bigodes “um pouco abaixo da zona do volante”.
Decepcionado no mais fundo dos meus devaneios infantis, não perdi, ainda assim, pela demora: recentemente, terminando de ler “Os sete loucos”, romance celerado do argentino Roberto Arlt, entrei com Erdosain, o mais louco dos loucos, num café tresnoitado da zona lumpen de Buenos Aires de 1920, e aí encontrei, enfim, um taberneiro dotado de bigodes “tão grandes como guiadores de bicicleta”. Fiquei como que a vê-lo, imaginando-o com um vente largo e uma rodilha suja atirada por cima do ombro, mais ao seu grande bigode, o qual não me parecia já um volante velocipédico, mas uma ave negra de largas asas preparando-se para alçar voo.